Adulterar um produto para obter ganhos comerciais não é particularidade
da indústria da carne no Brasil, como foi exposto pela operação Carne Fraca, da
Polícia Federal. Estudos e ações pontuais mostram que o crime é praticado para
maquiar outros alimentos que chegam à mesa dos brasileiros.
|
Agentes durante operação do Ministério Público no Rio Grande do Sul. Direito
de imagem MP-RS
|
Quase ao
mesmo tempo em que policiais federais levavam mais de 30 pessoas à prisão por
receber propinas ou adicionar substâncias maléficas à carne, uma ação no Rio Grande
do Sul que não teve a mesma repercussão tratava de um caso semelhante. Conheça
esse e outros problemas com produtos básicos do dia a dia.
Laticínios
vencidos
Na última
semana, uma operação do Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS) com
outras entidades cumpriu cinco mandados de prisão e quatro de busca e apreensão
contra produtores de laticínios que adulteravam lotes já impróprios para o
consumo.
Segundo
as investigações, empresas locais vinham adicionando substâncias para diminuir
a acidez e eliminar micro-organismos de laticínios vencidos. E, no creme de
leite, acrescentavam água para amolecer o produto envelhecido e ressecado.
Foi a 12ª
fase das operações "Leite Compen$ado", que começaram em 2012. E hoje
a operação integra um programa maior de segurança alimentar criado pela
Promotoria gaúcha, tamanho era o número de denúncias e processos judiciais de
irregularidades com alimentos.
|
Ureia e formol em laticínios são encontrados em análises
|
Mais de
cem pessoas - na maioria produtores e distribuidores do Rio Grande do Sul -
foram denunciadas e respondem a processos criminais em razão das ações do
Ministério Público.
Desde
então, diferentes substâncias já foram encontradas nos laticínios; entre elas,
ureia e formol. Um comunicado da Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(Anvisa) divulgado durante operações passadas alertou sobre o potencial
cancerígeno do formol; já a ureia, em doses razoáveis, tem baixa toxicidade.
"A
maioria das adulterações ocorre para aumentar a longevidade dos produtos",
explica Caroline Vaz, coordenadora do Centro de Apoio Operacional de Defesa do
Consumidor do MP-RS.
Mesmo
após cinco anos de operações, Vaz diz que as denúncias continuam: "Quando
descobrimos e coibimos um novo golpe, os grupos inventam uma nova técnica para
adulterar os produtos".
Ela
alerta para os problemas de fiscalização: há situações criminosas - como a
revelada na operação da PF -, mas também defasagem por falta de fiscais.
Azeite que é
óleo
Azeites
que não são extra virgem ou que nem sequer podem ser classificados como azeite
(e, sim, óleo), já foram denunciados pela Associação Brasileira de Defesa do
Consumidor (Proteste), que testa produtos desde 2002.
Resultados
recém-divulgados mostram que de 24 marcas testadas, sete ditas extra virgem na
verdade são misturas de óleos refinados, segundo a pesquisa. São elas:
Tradição, Figueira da Foz, Torre de Quintela, Pramesa, Lisboa, além de duas que
conseguiram na Justiça não ter seus nomes divulgados. Já outra marca (Beirão)
não continha azeite extra virgem, como descrito na embalagem.
"Consumidores
estão pagando mais por um produto que não tem a qualidade que se anuncia",
critica Sonia Amaro, advogada e representante da Proteste.
Enquanto
o azeite extra virgem é benéfico para a saúde, aumentando o colesterol bom
(HDL), o óleo é prejudicial, pois eleva, por exemplo, o mau colesterol (LDL).
Até o
momento, a Natural Alimentos, responsável pela importação da marca Lisboa,
afirmou que não foi notificada pela Proteste e que a partir desse ano apenas
comercializará azeites extra virgem importados aprovados por órgãos
controladores nos países de origem. As demais marcas não tinham respondido à
reportagem até a publicação deste texto.
Produtos
adulterados
A organização
científica independente US Pharmacopeia monitora um banco de dados sobre
fraudes de alimentos, que serve para mostrar tendências de adulteração em
vários países. A pedido da BBC Brasil, a entidade fez um breve levantamento
sobre o Brasil.
|
Fraude de peixe em amostras de Manaus
|
Registros
de adulteração da carne começaram em 2015, segundo a organização. E o caso do
leite tem sido um problema persistente. Além de ureia e formol, há ainda adição
de água oxigenada.
A Anvisa
diz que pequenas quantidades de água oxigenada no leite não trazem riscos à
saúde. Mas não há evidências sobre consumo em altas doses da substância.
Numa
análise com leite de cabra na Paraíba, 40% das 160 amostras continham leite de
vaca. Os resultados de 2012 foram publicados na revista American Dairy
Science Association.
Um estudo
publicado no periódico Food Chemistry revelou que 13% das amostras de
mel no Brasil eram acrescidas de xarope de açúcar.
Outra
pesquisa publicada no Journal of Heredity identificou fraude na
substituição de espécies de peixes em Manaus.
E há
ainda relatórios sobre a adulteração do café com casca da própria planta, além
de soja e milho, que são mais baratos.
Em
setembro do ano passado, uma ação pontual do Procon-MG indicou que 30,7% de 241
marcas de café analisadas continham impurezas acima do limite.
|
Outros grãos ou partes do próprio pé de café são acrescentados em
produtos comercializados
|
Controle do
café
Segundo o
engenheiro agrícola José Braz Matiello, pesquisador da Fundação Procafé, as
adulterações do café afetam o gosto da bebida, mas não causam males à saúde.
"O
café é torrado a temperaturas próximas a 260 graus, eliminando quaisquer
organismos eventualmente maléficos, diferentemente do que pode ocorrer com
outros alimentos ou bebidas consumidos in natura e sem tratamento
térmico", explicou por e-mail.
Desde
1989, a Associação Brasileira da Indústria de Café (Abic) faz análises anuais
com 3 mil amostras do mercado. O diretor-executivo Nathan Herszkowicz explica
que o programa começou em decorrência do alto índice de fraudes verificado à
época.
A Abic
então criou o Selo de Pureza e definiu que o limite tolerado de impurezas é de
1% da amostra total, com penalidades que vão de advertência a denúncia ao
Ministério Público.
Nos
testes iniciais, resíduos eram encontrados em até 25% das amostras de café.
Atualmente, Herszkowicz afirma que o índice não chega a 1%.
"A
adulteração mais comum continua a ser a adição da casca do café, que é um
resíduo usado para reduzir o custo do produto", explica.
Pressões na
legislação
Normas de
vigilância definem regras e punições sobre fraudes em produtos. Mas pelo menos
dois projetos de lei querem tornar crime hediondo a adulteração de alimentos.
O projeto
de lei do Senado 228, de 2013, está na Comissão de Constituição, Justiça e
Cidadania desde setembro do ano passado. Já o PL 6248/2013 não tem movimentação
desde 2015.
Enquanto
isto, organizações como a Proteste pressionam por mudanças na lei visando a
proibir determinados aditivos em alimentos. Esse é o caso do amarelo
tartrazina, um corante que provoca reações alérgicas.
Ele é
encontrado em produtos consumidos por crianças, como biscoitos salgados e
doces, além de refrigerantes e sucos.
"Há
anos pressionamos pelo banimento desse corante, mas ainda seguimos brigando por
isso", contou Sonia Amaro.
O
Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor lembrou que as normas brasileiras
sobre corantes são mais permissivas do que as de outros países, como os Estados
Unidos.
|
Plantação em Mato Grosso do Sul; agrotóxicos são amplamente usados no
Brasil.
Direito de imagem Paulo Fridman
|
Esse é o
caso de corantes chamados amarelo crepúsculo, banido na Finlândia e Noruega;
azul brilhante, proibido na Alemanha, Áustria, França, Bélgica, Noruega, Suécia
e Suíça; vermelho 40, não permitido na Alemanha, Áustria, França, Bélgica,
Dinamarca, Suécia e Suíça; entre outros.
O mesmo
acontece para determinados agrotóxicos aplicados em vegetais e frutas que
chegam aos consumidores brasileiros. Há anos, uma lista de pesticidas banidos
em alguns países é comercializada no Brasil.
Exemplos
são do acefato, um dos mais vendidos no país e que pode ter efeitos no sistema
endócrino, e o herbicida paraquat, que foi proibido até na China, que costuma
ser permissivo com leis ambientais.
|
Escândalo da carne revelou que produtos eram adulterados no Brasil. Direito
de imagem Reuters
|
Mas o
problema dos agrotóxicos, na verdade, é maior. A Proteste testou ano passado 30
amostras de supermercados e feiras do Rio de Janeiro e de São Paulo. Em 14%, os
níveis de pesticidas estavam acima dos recomendados pela Anvisa. Em 37%, havia
substâncias nem sequer autorizadas.
Fonte:
BBC