Se não
fosse uma forte tempestade na ilha grega de Anticítera (ou originalmente, Antikythera),
há mais de um século, um dos objetos mais desconcertantes e complexos do mundo
antigo muito provavelmente jamais teria sido descoberto.
Frágil, intrigante e cheio de surpresas: item 15.087 do Museu
Arqueológico Nacional em Atenas
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Após
buscar abrigo na ilha, um grupo de catadores de esponjas marinhas decidiu
tentar a sorte naquelas águas. Eles acabaram encontrando os restos de uma galé
romana que havia naufragado havia dois mil anos, quando o Império Romano
começou a conquistar as colônias gregas no Mediterrâneo.
Nas
areias do fundo do mar, a 42 metros de profundidade, estavam itens de grande
valor. De início, as peças, danificadas após anos no mar, ficaram esquecidas.
Mas em seguida um olhar mais atento mostrou que eram objetos feitos com esmero,
engrenagens talhadas à mão.
Um tesouro no fundo do Mediterrâneo.
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Obras incomparáveis
que sobreviveram aos saques feitos por romanos e à ação da água
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Entre
belas estátuas de cobre e mármore, estava o objeto mais intrigante da história
da tecnologia. Trata-se de um instrumento de bronze corroído, do tamanho de um
laptop moderno, feito há 2 mil anos, na Grécia antiga. É conhecido como máquina
(ou mecanismo) de Anticítera.
"Se
não tivessem descoberto a máquina, ninguém teria imaginado, ou nem mesmo
acreditado, que algo assim existisse, pois é muito sofisticada", disse à
BBC o matemático Tony Freeth, da Universidade de Cardiff. "É um mecanismo
de genialidade surpreendente".
Há
divergências sobre a data exata da descoberta, mas isto teria ocorrido entre
1900 e 1902.
No começo o artefato não dizia nada aos cientistas, mas eles logo
notaram que as peças traziam marcas e inscrições
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"Imagine:
alguém, em algum lugar da Grécia antiga, fez um computador mecânico",
afirma o físico grego Yanis Bitzakis.
Ambos
integram a equipe internacional que investigava o artefato. E eles não estão
exagerando nas descrições. Levou cerca de 1,5 mil anos até que algo parecido
com a máquina de Anticítera voltasse a aparecer, na forma dos primeiros
relógios mecânicos astronômicos, na Europa.
Vanguarda
Em 1950,
o físico inglês Derek John de Solla Price foi o primeiro a analisar em detalhes
os 82 fragmentos recuperados. Anos depois, em 1971, juntamente com o físico
nuclear grego Charalampos Karakalos, foram feitas imagens das peças com raios-X
e raios gama, que mostraram como o mecanismo era complexo: com 27 rodas de
engrenagem no seu interior.
A primeira surpresa: o mecanismo era formado por 27 engrenagens
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Os
especialistas conseguiram datar algumas outras peças com precisão, entre os
anos 70 a.C. e 50 a.C. Mas um objeto tão extraordinário não podia ser daquela
época, pensavam os especialistas. Talvez fosse mais moderno e tivesse caído no
mesmo local por casualidade.
"Se
cientistas gregos antigos podiam produzir esses sistemas de engrenagens há dois
milênios, toda a história da tecnologia do Ocidente teria que ser
reescrita", diz o matemático Freeth.
Números que começaram a surgir coincidiam com os conhecimentos dos gregos da
época
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127 e 235
dentes
Solla
Price deduziu que contar os dentes em cada roda poderia fornecer pistas sobre
as funções da máquina. Ele, então, chegou a dois números que fazem sentido na
astronomia: 127 e 235.
"Esses
dois números eram muito importantes na Grécia antiga", diz o
astrônomo Mike Edmunds.
Os gregos
sabiam como os corpos celestes se moviam no espaço, podiam calcular suas
distâncias da Terra e a geometria de suas órbitas.
Os 19
anos solares são exatamente 235 meses lunares, o chamado ciclo Metônico - um
dos números encontrados no artefato. Já o outro número, 127, mostrava as
revoluções (ou movimentos elípticos) da Lua ao redor da Terra.
Seria
possível que os gregos antigos estivessem usando a máquina para seguir o
movimento da Lua?
As contas não fechavam se apenas um ano solar fosse levado em conta,
mas em um ciclo de 19 anos...
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As fases
da Lua eram extremamente úteis na época dos gregos antigos. Com base nelas,
determinavam-se épocas de plantio, estratégias de batalha, festas religiosas,
momentos de pagar dívidas e autorizações para viagens noturnas.
Price
desvendou o artefato após 20 anos de intensas pesquisas, mas ainda havia peças
do quebra-cabeça por encaixar.
Engrenagens identificadas pelos cientistas não estavam encaixadas, e
montar o quebra-cabeças demandou muito trabalho
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O futuro 223
O passo
seguinte demandou tecnologia sob encomenda. A equipe dedicada a estudar a
máquina convenceu o engenheiro de raios-X Roger Hadland a criar um equipamento
especial para fazer imagens do mecanismo. Com isso, encontraram outro número
chave: 223 era o número de outra roda do mecanismo.
Por volta
de 600 a.C., astrônomos babilônios antigos descobriram o ciclo de Saros, no
qual a Lua e a Terra voltavam a se encontrar a cada período de 223 luas (18
meses e 11 dias), o que prevê a ocorrência de eclipses.
A máquina
de Anticítera, portanto, podia prever eclipses. Não apenas o dia, mas a hora,
direção da sombra e cor com a qual a Lua apareceria.
Graças a milhões de tabelas com dados históricos que arquivaram ao
longo do tempo, babilônios encontraram o padrão dos eclipses
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"Quando
havia um eclipse lunar, o rei babilônio deixava o posto e um substituto assumia
o poder, de modo que os maus agouros fossem para ele. Logo o substituto era
morto e o rei voltava a assumir sua posição", conta John Steele,
especialista sobre a Babilônia no Museu Britânico.
Informações sobre eclipses que pesquisadores encontraram na máquina de
Anticítera são surpreendentemente sofisticadas
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Tudo
dependia da Lua
Os
pesquisadores chegaram a mais uma maravilha.
O ciclo
Saros depende do padrão da Lua, mas "nada sobre a Lua é simples", diz
Freeth.
"A
Lua tem a órbita elíptica, assim ela viaja mais rapidamente quando está mais
perto da Terra", exemplifica.
Podia
então a máquina de Anticítera rastrear o caminho flutuante da Lua?
Um mecanismo complexo para desvendar os caprichos da Lua |
Sim,
podia: duas engrenagens menores, uma delas com uma pinça para regular a
velocidade de rotação, replicavam com precisão o tempo da trajetória que o
satélite natural executa ao redor da Terra; e outra, com 26 dentes e meio,
computava o deslocamento dessa órbita.
Ao
examinar a parte frontal do aparelho, os investigadores concluíram que ele
demonstrava como os gregos entendiam o Universo naquele momento: a Terra no
centro e cinco planetas ao redor.
O movimento dos cinco planetas que podiam ser vistos a olho nu:
Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno
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"Era
uma ideia extraordinária: pegar teorias científicas da época e mecanizá-las
para ver o que aconteceria dias, meses e décadas depois", diz o
matemático.
Mais um
enigma
"Essencialmente,
foi a primeira vez que a raça humana criou um computador", acrescenta
Freeth. "É incrível como um cientista daquela época descobriu como usar
engrenagens para rastrear os complexos movimentos da Lula e dos planetas".
Mas quem
foi esse cientista?
Uma pista
estava em outra função da máquina.
O
aparelho também previa a data exata dos Jogos Pan-Helênicos: quatro festivais
separados que se realizavam periodicamente na Grécia Antiga: Jogos Olímpicos,
ou de Olímpia, Jogos Píticos, Jogos Ístmicos e Jogos Nemeus.
O curioso
é que embora os Jogos de Olímpia tivessem mais prestígio, os Jogos Ístmicos, em
Corinto, apareciam em letras maiores.
Chamava a atenção o destaque aos jogos que eram celebrados no istmo de
Corinto a cada dois anos, em homenagem a Poseidon, deus grego do mar
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Os
investigadores já tinham notado que os nomes dos meses que apareciam em outra
engrenagem da máquina eram coríntios.
As
evidências sugeriam que o criador da máquina era um coríntio que vivia na
colônia mais rica governada pela cidade: Siracusa.
Siracusa
era lar do mais brilhante dos matemáticos e engenheiros gregos: Arquimedes.
Trata-se,
talvez, do cientista mais importante da Antiguidade clássica, que determinou a
distância da Terra à Lua, descobriu como calcular o volume de uma esfera, o
número fundamental π (Pi) e havia garantido que moveria o mundo com apenas uma
alavanca.
"Só
um matemático brilhante como Arquimedes poderia ter desenhado a máquina de Anticítera",
opina Freeth.
"Dê-me um ponto de apoio e moverei o
mundo". Direito
de imagem Getty Images
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Sabe-se
que Arquimedes estava em Siracusa quando os romanos conquistaram a cidade, e
que o general Marco Claudio Marcelo havia ordenado que o cientista não fosse
morto, mas um soldado acabou assassinando-o.
Siracusa
foi saqueada e seus tesouros foram enviados a Roma. O general Marcelo levou
consigo duas peças - ambas, diziam, eram de Arquimedes. Os investigadores
acreditam que fossem versões anteriores da máquina.
Um
indício está em uma descrição que o orador Cícero fez, séculos depois, de uma
das máquinas que ele observou de Arquimedes:
"Arquimedes
encontrou a maneira de representar com precisão, em apenas um aparato, os
variados e divergentes movimentos dos cinco planetas com suas distintas
velocidades, de modo que o mesmo eclipse ocorre no globo (planetário) e na
realidade".
Cícero descreveu um planetário semelhante ao da máquina de Anticítera
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Mas o que
aconteceu com a brilhante tecnologia da máquina? Por que ela se perdeu?
Como tantas
outras coisas, com a queda da civilização grega e, mais tarde, da romana, os
conhecimentos "imigraram" para o Oriente, onde foram mantidos por
bizantinos e árabes eruditos.
O segundo
artefato com engrenagens de bronze mais antigo é do século 5 e tem inscrições
em árabe.
E no
século 8, os mouros levaram esses conhecimentos de volta à Europa.
Todas as peças para introduzir os conhecimentos em uma só máquina
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Investigações
anteriores apontaram que a máquina estava dentro de uma caixa de madeira que
não sobreviveu ao tempo.
Uma caixa
que continha todo o conhecimento do planeta, tempo, espaço e Universo.
"É
um pouco intimidador saber que, logo antes da queda de sua grande civilização,
os gregos antigos tinham chegado tão perto de nossa era, não apenas em
pensamento, mas na tecnologia científica", disse Derek J. de Solla Price.
Máquina revela o incrível desenvolvimento tecnológico da Grécia Antiga
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- O texto foi originalmente publicado no dia 3 de julho de 2016 e atualizada no dia 17 de maio de 2017. BBC