Seres
humanos, bactérias e vírus têm coexistido ao longo da história. Da peste
bubônica à varíola, nós evoluímos para resistir a eles, e em resposta eles
desenvolveram novas maneiras de nos infectar.
As mudanças climáticas podem trazer de volta à vida antigos vírus e
bactérias que já não existiam mais. Direito de imagem Staffan
Widstrand/naturepl.com
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Já faz
mais de um século que temos os antibióticos, desde que Alexander Fleming
descobriu a penicilina. Mas as bactérias não deixaram por menos: elas
responderam evoluindo sua resistência aos antibióticos. A batalha parece sem
fim: nós passamos tanto tempo com patógenos, que às vezes desenvolvemos um tipo
de impasse natural.
No
entanto, o que aconteceria se nós, de repente, ficássemos expostos a bactérias
e vírus mortais que ficaram ausentes por milhares de anos - ou então que nunca
vimos antes?
É
possível que estejamos perto de descobrir que aconteceria. As mudanças
climáticas estão derretendo o solo da região do ártico que existiram ali por
milhares de anos e, conforme o solo derrete, ele vai liberando antigos vírus e
bactérias que, depois de ficarem tanto tempo "dormentes", voltam à
vida.
Em agosto
de 2016, em uma região remota da tundra da Sibéria chamada Península Iamal no
Círculo Ártico, um garoto de 12 anos morreu e pelo menos 20 pessoas foram
hospitalizadas após terem sido infectadas por antraz.
A teoria
é que, há mais de 75 anos, uma rena infectada com antraz morreu e sua carcaça
congelada ficou presa sob uma camada de solo também congelado, chamado de
permafrost. Lá ela ficou até a onda de calor que invadiu a região no verão de
2016 - e derreteu o permafrost.
Isso
expôs a carcaça da rena infectada e liberou o vírus para a água e para o solo
do local - e, consequentemente, para os alimentos que as pessoas que viviam lá
comiam. Mais de 2 mil renas nasceram infectadas ali, e houve um número menor de
casos em humanos.
O medo
agora é que esse não tenha sido um caso isolado.
Conforme
a Terra vai aquecendo, mais camadas do permafrost vão derretendo. Sob
circunstâncias normais, cerca de 50cm das camadas de permafrost mais
superficiais derretem no verão. Mas com o aquecimento global, camadas mais
profundas e antigas têm derretido também.
O
permafrost congelado é o lugar perfeito para as bactérias se manterem vivas por
um longo período de tempo, talvez até um milhão de anos. Isso significa que o
derretimento das geleiras pode abrir a caixa de pandora das doenças.
Renas migrando na região da
Sibéria. Direito
de imagem Eric Baccega/naturepl.com
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A
temperatura no Círculo Ártico está aumentando rapidamente, cerca de 3 vezes
mais rápido do que no resto do mundo. Conforme o permafrost derrete, outros
agentes infecciosos podem ser liberados.
"O
permafrost é um bom lugar para preservar micróbios e vírus, porque ele é frio,
não tem oxigênio e é escuro", explica o biólogo evolucionista Jean-Michel
Claverie da Universidade Aix-Marseille, na França.
"Vírus
patogênicos que podem infectar humanos ou animais podem ser preservados em
camadas antigas de permafrost, inclusive alguns que podem ter causado epidemias
globais no passado."
Só no
início do século 20, mais de um milhão de renas morreram por causa de infecção
por antraz. Não é fácil cavar tumbas muito profundas, então a maioria das
carcaças dos animais são enterrados perto da superfície, espalhados pelos 7 mil
cemitérios no norte da Rússia.
No
entanto, o maior medo é o que mais pode estar escondido sob o solo congelado.
Pessoas e
animais têm sido enterrados em permafrost por séculos, então é plausível dizer
que outros agentes patogênicos e doenças infecciosas podem ser desencadeados se
o derretimento do solo continuar. Por exemplo, cientistas descobriram
fragmentos de RNA da gripe espanhola de 1918 em corpos enterrados em valas
comuns na tundra do Alasca. A varíola e a peste bubônica também podem estar
enterradas na Sibéria.
Em um
estudo em 2011, Boris Revich e Marina Podolnaya escreveram: "Como
consequência do derretimento do permafrost, vetores de doenças infecciosas
mortais dos séculos 18 e 19 podem voltar, especialmente próximo aos cemitérios
onde as vítimas dessas infecções foram enterradas."
Por
exemplo, na década de 1890, houve uma epidemia grande de varíola na Sibéria.
Uma cidade perdeu praticamente 40% de sua população. Seus corpos foram
enterrados sob o permafrost nas margens do rio Kolyma. Cerca de 120 anos
depois, a enchente do rio começou a erodir as margens e o derretimento do
permafrost acelerou o processo de erosão.
Em um
projeto que começou nos anos 1990, cientistas do Centro Estadual de Pesquisa de
Virologia e Biotecnologia em Novosibirsk analisaram os restos de pessoas da
Idade da Pedra que foram encontrados no sul da Sibéria, na região de Gorny
Altai. Eles também testaram amostras de cadáveres de homens que haviam morrido durante
epidemias virais no século 19 e foram enterrados no permafrost russo.
Direito
de imagem Wild Wonders of Eu
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Os
pesquisadores dizem que eles encontraram corpos com feridas características das
marcas deixadas pela varíola. Eles não chegaram a encontrar o vírus da varíola
em si, mas detectaram fragmentos de seu DNA.
Certamente
não é a primeira vez que uma bactéria congelada voltou à vida.
Em um
estudo de 2005, cientistas da Nasa ressuscitaram com sucesso bactérias que
haviam ficado "guardadas" em um lago congelado no Alasca por 32 mil
anos. Os micróbios, chamados Carnobacterium pleistocenium, estavam
congelados desde o período Pleistoceno, quando mamutes lanosos ainda vagavam
pela Terra. Quando o gelo derretia, eles começavam a nadar ao redor, sem
parecer afetados.
Dois anos
depois, cientistas conseguiram ressuscitar bactérias de 8 milhões de anos que
havia ficado adormecidas no gelo, sob a superfície glacial nos vales Beacon e
Mullins na Antártica. No mesmo estudo, bactérias de 100 mil anos foram ressuscitadas.
No
entanto, nem todas as bactérias podem voltar à vida depois de terem sido
congeladas em permafrost. A bactéria do antraz consegue porque ela têm esporos,
que são muito resistentes e podem sobreviver por mais de um século.
Outra
bactéria que pode formar esporos e, consequentemente, sobreviver no permafrost,
é a do tétano e a Clostridium botulinum, responsável pelo botulismo -
uma doença rara que pode causar paralisia e até mesmo se tornar fatal. Alguns
fungos e vírus também podem sobreviver nesse time de ambiente por mais tempo.
Em um
estudo de 2014, uma equipe conseguiu ressuscitar dois vírus que estavam no
permafrost da Sibéria por 30 mil anos. Conhecidos como Pithovirus sibericum
and Mollivirus sibericum, eles são dois vírus gigantes, porque ao contrário
da maioria dos outros, eles conseguem ser vistos sem microscópios. Eles foram
encontrados a 30 metros de profundidade na tundra costal.
Uma vez
"vivos" de novo, esses vírus se tornaram rapidamente infecciosos.
Para a nossa sorte, esses vírus em particular somente infectam seres
monocelulares, como amebas. No entanto, o mesmo estudo sugere que outros vírus
- que podem infectar humanos - podem ser ressuscitados da mesma forma.
E não é
só o aquecimento global que pode derreter diretamente o permafrost para termos
uma ameaça. Isso porque o gelo do Mar Ártico está derretendo, então a costa
norte da Sibéria se tornou mais acessível pelo oceano. Como resultado disso, a
exploração industrial, incluindo a exploração de minas por ouro e minerais, e a
própria exploração de petróleo e gás natural estão se tornando agora mais
lucrativas.
Os esporos do antraz podem sobreviver
por muito tempo. Direito
de imagem Cultura RM/Alamy
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"Neste
momento, essas regiões estão desertas e as camadas mais profundas de permafrost
são deixadas em paz", explicou Claverie. "No entanto, essas camadas
mais antigas podem ser expostas por escavações de minas ou por perfurações de
petróleo. Se vírus ou bactérias ainda estiverem lá, isso poderia abrir as
portas para um desastre."
Vírus
gigantes podem ser os principais culpados por uma grande epidemia.
"A
maioria dos vírus são rapidamente desativados fora de células hospedeiras por
conta da luz, dissecação ou degradação bioquímica espontânea", diz
Claverie. "Por exemplo: se o DNA dele sofre danos impossíveis de serem
reparados, o vírus não será mais infeccioso. No entanto, entre os vírus
conhecidos, o vírus gigante tende a ser mais resistente e quase impossível de
quebrar."
Claverie
afirma que vírus dos primeiros humanos a habitarem o Ártico podem ressurgir.
Poderíamos até mesmo ver vírus de espécies humanas há muito tempo extintas,
como o Neanderthal e Denisovan, que se estabeleceram na Sibéria e foram
infectados com várias doenças virais. Restos do homem de Neanderthal de 30-40
mil anos atrás foram encontrados na Rússia. Populações humanas viveram ali por
milhares de anos - adoeceram ali e morreram ali.
"A
possibilidade de nós pegarmos um vírus de um Neanderthal há muito tempo extinto
sugere que a ideia de que um vírus pode ser erradicado do planeta é errada, e
nos dá um falso senso de segurança", pontua Claverie. "E é por isso
que deveríamos manter estoques de vacina, para caso voltemos a precisar delas
um dia."
Desde
2014, Claverie analisa os DNAs de camadas de permafrost, buscando
características genéticas de vírus e bactérias que poderiam infectar humanos.
Ele encontrou evidências de muitas bactérias que provavelmente são perigosas
para humanos. As bactérias têm um DNA que codifica fatores de virulência:
moléculas que produzem bactérias e vírus patogênicos, o que aumenta sua
capacidade de infectar um hospedeiro.
A equipe
de Claverie também encontrou algumas sequências de DNA que pareciam vir de
vírus, inclusive da herpes. No entanto, eles ainda não encontraram nenhum traço
de varíola. Por razões óbvias, eles não tentaram reavivar nenhum dos patógenos.
Além do solo
do Ártico
Os
patógenos que foram isolados dos humanos por muito tempo podem voltar não
apenas pelo gelo ou pelo permafrost - cientistas da Nasa descobriram em fevereiro
deste ano micróbios de 10-50 mil anos atrás dentro de cristais em uma mina do
México.
A
bactéria foi encontrada na Caverna dos Cristais, parte de uma mina em Naica, no
norte do México. Lá, há vários cristais brancos do mineral selenito, que foram
formados ao longo de centenas e milhares de anos.
Bactérias dormentes foram
encontradas em geleiras antárticas.
Direito
de imagem Colin Harris/Era Images/Alamy
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A
bactéria ficou presa dentro de pequenos bolsos de fluidos dentro dos cristais,
mas uma vez que eles foram removidos, ela reviveu e começou a se multiplicar.
Os micróbios são geneticamente únicos e podem ser novas espécies, mas os
pesquisadores ainda vão divulgar um estudo completo sobre eles.
Até mesmo
bactérias mais velhas foram encontradas na Caverna Lechuguilla, no Novo México,
a 300 metros sob o solo. Esses micróbios não tinham visto a superfície nos
últimos 4 milhões de anos.
A caverna
nunca vê a luz do dia, e é tão isolada que leva cerca de 10 mil anos para a
água da superfície entrar na caverna.
Apesar
disso, a bactéria de alguma forma se tornou resistente aos 18 tipos de
antibióticos, incluindo remédios considerados o "último recurso" para
combater infecções . Em um estudo publicado em dezembro do ano passado,
pesquisadores descobriram que a bactéria, conhecida como Paenibacillus sp.
LC231, era resistente a 70% dos antibióticos e conseguia desativar boa parte
deles.
Conforme
as bactérias ficaram completamente isoladas na caverna por quatro milhões de
anos, elas não tiveram contato com as pessoas ou com antibióticos usados para
tratar as infecções humanas. O que significa que sua resistência aos
antibióticos deve ter surgido de outra forma.
Os
cientistas envolvidos acreditam que a bactéria, que não prejudica os seres
humanos, é um dos muitos que naturalmente evoluíram e criaram a resistência aos
antibióticos. Isso sugere que a resistência aos antibióticos tem existido há
milhões e até bilhões de anos.
Obviamente,
uma resistência a antibiótico tão antiga não pode ter se desenvolvido como
resultado do uso de um antibiótico.
O motivo
para isso é que muitos tipos de fungos, ou até de outras bactérias, produzem
naturalmente antibióticos para ganhar vantagem competitiva com outros
micróbios. Foi assim que Fleming descobriu a penicilina: bactérias em uma placa
de Petri morreram depois de uma terem sido contaminadas com uma excreção de
mofo.
Em
cavernas, onde há pouca comida, organismos precisam ser implacáveis para
sobreviver. Bactérias como a Paenibacillus podem ter precisado
desenvolver resistência a antibióticos para evitarem ser mortas por organismos
rivais.
Isso
explicaria por que essas bactérias são resistentes apenas a antibióticos
naturais, que vêm de outras bactérias ou fungos, e compõem cerca de 99,9% de
todos os antibióticos que usamos. Essas bactérias nunca encontraram
antibióticos criados pelo homem, então não têm resistência a eles.
"Nosso
trabalho, e o trabalho de outros, sugere que a resistência a antibióticos não é
um conceito novo", disse o microbiólogo Hazel Barton, da Universidade de
Akron, Ohio, que liderou o estudo. "Nossos organismos foram isolados de
espécies da superfície por 4 a 7 milhões de anos, mas a resistência que eles têm
é geneticamente idêntica à de espécies encontradas na superfície. Isso
significa que esses genes são pelo menos antigos, e não foram originados pelo
uso humano dos antibióticos para tratamento".
Vírus gigantes podem ser os
principais culpados por uma grande epidemia.
Direito
de imagem Science Photo Library/Alamy
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Apesar de
a Paenibacillus não infectar humanos, ela poderia, em teoria, passar sua
resistência a antibióticos para outros patógenos. No entanto, por ela estar
isolada abaixo de 400 metros de rocha, isso parece improvável de acontecer.
No
entanto, a resistência a antibióticos naturais é provavelmente tão
predominante, que muitas bactérias que emergem de permafrost devem já tê-la
desenvolvido. Em um estudo de 2011 os cientistas extraíram DNA de bactérias de
30.000 anos de idade encontradas em permafrost na região de Beringian entre a
Rússia e o Canadá. Eles encontraram genes que codificam a resistência a
antibióticos beta-lactâmicos, tetraciclina e antibióticos glicopeptídicos.
Quanto nós
deveríamos nos preocupar com isso?
Uma
questão a ser levada em consideração é que o risco dos patógenos de permafrost
ainda é desconhecido, então isso não pode nos preocupar demais. Em vez disso,
nós deveríamos focar em ameaças mais concretas, como o aquecimento global e as
mudanças climáticas.
Por
exemplo, conforme a Terra vai aquecendo, os países do Norte vão se tornando
mais suscetíveis a epidemias de doenças "do Sul", como malária,
cólera, dengue, já que esses patógenos sobrevivem em temperaturas mais quentes.
Mas há
outra perspectiva também, que seria a de nós não ignorarmos os riscos apenas
porque nós não podemos estimá-los.
"Seguindo
nosso trabalho e o de outros, existe agora uma possibilidade que não é zero de
micróbios patogênicos reviverem e nos infectarem", afirmou Claverie.
"Quão provável isso é, ainda não sabemos, mas é uma possibilidade.
Poderiam ser bactérias que são curáveis com antibióticos, ou bactérias
resistentes, ou um vírus. Se o patógeno não ficou em contato com humanos por
muito tempo, então o nosso sistema imunológico não está preparado para ele.
Sendo assim, pode ser perigoso."
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