Desconectar
é um direito. Desconectar do trabalho, desconectar do celular. Daí a
necessidade de reconhecer o direito a desconectar.
Hipnotizados.
De
cabeça baixa. Absortos com a tela, pulando de uma conversa do WhatsApp para
outra, num esforço para responder às mensagens que se amontoam. Checando a
bolinha vermelha do Facebook, o email, o Snapchat, a última curtida no
Instagram. Pendentes também do grupo de mensagens instantâneas que o chefe
inventou de criar para passar instruções a qualquer momento, na hora que for,
tanto faz, vamos estar sempre aí, disponíveis, acessíveis, localizáveis,
preparados para vestirmos o macacão do funcionário disposto. Essa é a norma que
aparentemente se impôs na cultura trabalhista (e das relações sociais) sob a
luz das novas tecnologias; algo sobre o que, talvez, não tivemos muito tempo
para refletir. É possível viver assim? É conveniente?
Tecnologia, ajuda ou atrapalha?
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A
hiperconectividade se instalou sem regras de etiqueta, sem códigos de conduta
definidos, sem protocolos, sem tempo para processarmos seu impacto. Mas os
comportamentos sociais, às vezes abusivos, já criaram a necessidade de
legislar, como acaba de fazer a França. Desconectar é um direito. Desconectar
do trabalho, desconectar do celular. Daí a necessidade de reconhecer o direito
a desconectar.
Existe
um código – variável, com diferentes versões, mas estabelecido – sobre como se
portar à mesa com outros comensais. Sobre o que fazer se um idoso entra no
vagão metrô. Do que dizer quando alguém faz algo por nós, “muito obrigado”.
Sobre o celular, porém, ninguém nos ensinou nada. Nós o desbloqueamos entre 80
e 110 vezes por dia, segundo estudos da Apple e do fabricante de aplicativos
Locket. Ele se instalou tão rapidamente nas nossas vidas que não houve tempo de
consolidar normas de convivência. Predomina o uso desordenado, caótico, às
vezes selvagem. E assim vamos levando.
A
França, como sempre pioneira em questões trabalhistas, foi a primeira a tomar
providências. Desde 1º. de janeiro, todas as empresas com mais de 50
funcionários devem estabelecer, em comum acordo com a força de trabalho,
horários determinados de conexão ao celular e à Internet. Os empregados têm o
direito de desfrutar de 11 horas de descanso entre duas jornadas de trabalho.
Não
é o único lugar onde medidas desse tipo foram adotadas. Mais de cem municípios
da Catalunha (nordeste da Espanha) já aderiram a uma reforma que pretende
“humanizar” os horários, a fim de que as pessoas possam recuperar suas vidas fora
do escritório – o que significa não marcar reuniões para depois das 16h e não
enviar e-mails a partir das 18h, numa iniciativa batizada de Rede de Cidades e
Povoados pela Reforma Horária. Na Alemanha, a Volkswagen implantou um bloqueio
de acesso ao email do celular entre 18h15 e 7h da manhã seguinte. Está em
marcha um processo de certa desconexão.
“A hiperconectividade é prejudicial à saúde,
como o tabaco”, diz o filósofo Puig Punyet
“É necessário abrir um debate jurídico, sociológico e político”, afirma Víctor Salgado, advogado especializado em novas tecnologias. “Todos nós estamos sendo teletrabalhadores, os assuntos do trabalho continuam nos atingindo ao chegar em casa, sentimos a pressão de precisar responder. E, se a comunicação se dá por uma conta do WhatsApp, e é possível comprovar se as pessoas leram ou não a mensagem, aí já é uma invasão máxima”, argumenta. Samantha A. Conroy, doutora em Filosofia Corporativa e pesquisadora de gestão de Recursos Humanos da Universidade Estadual do Colorado (EUA), concorda. “O seu sucesso numa empresa pode depender de você estar sempre disponível”, afirma, por telefone. Ou, dito de outra forma: sua continuidade, principalmente em mercados de trabalho voláteis, depende de você estar ligado. Além disso, muita gente (numerosos autônomos, por exemplo) não pode se dar ao luxo de desligar o celular, sob o risco de perder trabalho.
“É necessário abrir um debate jurídico, sociológico e político”, afirma Víctor Salgado, advogado especializado em novas tecnologias. “Todos nós estamos sendo teletrabalhadores, os assuntos do trabalho continuam nos atingindo ao chegar em casa, sentimos a pressão de precisar responder. E, se a comunicação se dá por uma conta do WhatsApp, e é possível comprovar se as pessoas leram ou não a mensagem, aí já é uma invasão máxima”, argumenta. Samantha A. Conroy, doutora em Filosofia Corporativa e pesquisadora de gestão de Recursos Humanos da Universidade Estadual do Colorado (EUA), concorda. “O seu sucesso numa empresa pode depender de você estar sempre disponível”, afirma, por telefone. Ou, dito de outra forma: sua continuidade, principalmente em mercados de trabalho voláteis, depende de você estar ligado. Além disso, muita gente (numerosos autônomos, por exemplo) não pode se dar ao luxo de desligar o celular, sob o risco de perder trabalho.
Uma
pesquisa feita nos Estados Unidos por Conroy e por seus colegas Liuba Belkin,
da Universidade Lehigh, e William Becker, da Universidade Tecnológica da
Virgínia, e cujos resultados preliminares foram apresentados em julho, salienta
que o problema não é só a necessidade de dedicar tempo a responder e-mails em
horários impróprios, mas também o “estresse antecipatório” acarretado pela
expectativa de receber um email que precisará ser respondido. “Essa expectativa
é que leva o empregado a não poder se desconectar. Ele sente a pressão de
precisar ficar checando o email, de estar preparado para responder se for
necessário.”
Conroy
conta que as 567 pessoas entrevistadas no estudo admitiram dedicar em média
quase oito horas semanais a responder emails fora do horário de expediente. O
título do estudo é Exaustos, Mas Incapazes de Desconectar.
A
legislação francesa, portanto, deve satisfazer a uma silenciosa demanda
latente. Segundo um estudo de 2015 da consultoria Eléas, 37% dos trabalhadores
da França usam o e-mail ou outras ferramentas profissionais fora do horário de
trabalho. Na Espanha, a cifra chega a 67%, de acordo com um levantamento da consultoria
de RH Randstad, que aponta também que 41% dos trabalhadores afirmam se sentir
pressionados a responder emails e telefonemas durante suas férias.
“Estamos num momento de hiperconsumo das novas
tecnologias”, diz Enric Puig Punyet, autor de La Gran Adicción (“a grande
dependência”, inédito no Brasil), um livro que trata da hiperconectividade. “E
já vemos os inconvenientes: dependência, ansiedade, falta de gestão do próprio
tempo, o mau uso que as empresas fazem dessas tecnologias”, acrescenta Puig, doutor
em Filosofia. Ele não está convencido de que a solução seja impor leis, ainda
mais se forem tão vagas quanto a francesa, mas elogia o fato de a questão estar
sendo discutida. “Deveríamos buscar uma
sociedade que entenda que esta hiperconectividade é prejudicial para a saúde,
como o tabaco.”
Um homem com seu tablet em um restaurante de Barcelona. ALBERT GARCIA |
A capacidade de se conectar em qualquer lugar, a qualquer momento, tampouco
pode ser demonizada. Para começar, há atividades em que isso é inescapável.
Deixando de lado os abusos de quem acha que o trabalho é a única coisa que
existe – um em cada três empregados escoceses afirma que seus chefes consideram
que o emprego deve estar acima da vida pessoal e familiar, segundo um estudo do
instituto YouGov –, as novas ferramentas representaram, em muitos casos, uma
libertação. Agilizaram o trabalho. Permitem que se possa cumprir as tarefas em
qualquer lugar, a qualquer hora. Uma flexibilidade que é muito bem-vinda, por
exemplo, na hora de conciliar. “Foram criadas novas oportunidades de emprego,
novos trabalhos que podem ser feitos de casa”, salienta, falando por telefone
de Londres, a psicóloga Anna Cox, diretora-adjunta do UCLIC, um centro de
estudos da interação entre humanos e computadores do University College London
(UCL). “A qualidade de vida dos trabalhadores melhorou, eles estão mais
produtivos. As novas tecnologias tiveram um impacto realmente positivo”,
acrescenta.
Essa
estudiosa dos equilíbrios entre a vida pessoal e a vida profissional considera
que uma lei como a francesa não é necessária. “Fico preocupada quando as
empresas e os Governos adotam políticas que nos levam a 20 ou 40 anos atrás,
que dificultam que possamos trabalhar com flexibilidade”, diz. A imposição de
obstáculos para que um trabalhador possa, por exemplo, se organizar para
apanhar os filhos às 17h e continuar trabalhando em casa por mais duas horas
depois disso, graças às novas ferramentas, parece um atraso.
Cox
considera que a situação ideal é que o funcionário possa escolher. Haverá os
que desejam fronteiras claras entre vida pessoal e trabalhista, e outros que as
preferem flexíveis. E, em todo caso, sempre restará a opção de usar aplicativos
que diferenciem esses âmbitos: duas contas de email, dois celulares... O
desafio é que os empregados possam comunicar de alguma forma uma mensagem que
não seja entendida como uma manobra de evasão: agora não estou trabalhando.
Desconectar
é saudável.
“Estar constantemente conectado ao trabalho cria um estresse que
não é bom para o cérebro nem para muitos outros órgãos”, afirma, sem rodeios,
Javier de Felipe, neurocientista do Centro Superior de Pesquisas Científicas da
Espanha e um dos coordenadores do Projeto Cérebro Humano, iniciativa europeia
de pesquisa cerebral.
Junto
com as mensagens relevantes que entram diariamente na nossa vida por alguns dos
canais que mantemos abertos (mensagens instantâneas, redes sociais, emails) se
infiltram também dezenas de partículas de comunicação que configuram um
emaranhado, puro ruído, que só serve para turvar e eventualmente adormecer as
nossas mentes.
Vivemos
permanentemente em alerta, dispostos a responder a um novo estímulo, a uma nova
dose de adrenalina gerada por uma bolinha na tela.
“Os estudos demonstram que somos cada vez
menos capazes de tolerar o tempo que estamos a sós com nossos pensamentos.
Precisamos nos conectar com nós mesmos.” É o que diz, por e-mail, a prestigiosa
psicóloga Sherry Turkle, do Instituto Tecnológico de Massachusetts (MIT),
autora de Reclaiming Conversation (“recuperando a conversa”, inédito no
Brasil), em que convida a utilizar com inteligência as novas ferramentas
tecnológicas. “A cultura de estar sempre conectado abala a criatividade das
pessoas, sua capacidade de ficarem sozinhas, suas relações. No final, sua
produtividade sofre, assim como o seu bem-estar.”
As
fronteiras entre vida pessoal e profissional se esfumam cada vez mais. E, se há
um espaço onde isso ganha corpo, é nos smartphones, que parecem aliviar algumas
das mais profundas necessidades humanas. Quando nos submergimos neles,
conseguimos nos relacionar, mantemos a mente ocupada e evitamos enfrentar a
solidão, os nossos pensamentos. Quase sempre aparece alguém em um grupo do
WhatsApp, no Facebook, no Instagram ou no Snapchat que nos oferece, por um
instante, a ilusão de que não estamos sozinhos.
Mas
estamos. Diante de uma tela. Diante de duas telas. Sozinhos.
A
conexão permanente, de fato, parece se adequar muito bem à natureza humana.
Somos uma espécie social, precisamos nos relacionar com outros, e a tecnologia
nos permite desenvolver essa faceta. Além disso, somos curiosos, como bem
aponta Nuria Oliver, especialista em novas tecnologias e inteligência
artificial e diretora científica de dados da Data-Pop Alliance: “Acessamos as
informações, os estímulos, 24 horas por dia: a Internet não fecha nunca”.
FRANÇA PROTEGE
EMPREGADOS DA ‘COMBUSTÃO’ PROFISSIONAL
Os franceses
querem ser a ponta de lança do direito a se desconectar, em parte como resposta
aos múltiplos casos de burnout [esgotamento, combustão] ocorridos nos últimos
anos por causa da pressão profissional. Em 2008 e 2009, por exemplo, houve 35
suicídios na France Telecom (atual Orange). Também ocorreram casos na Renault.
Já há no país empresas como a Axa, a própria Orange e La Poste (correio), que
adotaram, antes mesmo da entrada da lei em vigor, medidas que desobrigam o
funcionário de responder a e-mails fora do horário de trabalho.
A redação final
do texto legal, porém, ficou um tanto indefinida e muito aberta à interpretação
feita em cada escritório. São as empresas que devem definir em comum acordo com
os trabalhadores as medidas a serem tomadas para garantir a desconexão.
Assim, pouco a pouco, vamos perdendo a capacidade de tolerar o tédio, uma das fontes da criatividade. Quando alguém fica entediado, precisa inventar algo para matar esse tempo. É difícil resistir à tentação de abrir uma mensagem ou checar se houve alguma nova curtida no nosso último post numa rede social. “É fácil entrar no círculo vicioso da tecnologia”, diz Oliver.
Assim, pouco a pouco, vamos perdendo a capacidade de tolerar o tédio, uma das fontes da criatividade. Quando alguém fica entediado, precisa inventar algo para matar esse tempo. É difícil resistir à tentação de abrir uma mensagem ou checar se houve alguma nova curtida no nosso último post numa rede social. “É fácil entrar no círculo vicioso da tecnologia”, diz Oliver.
É
paradoxal. Às vezes nos queixamos da avalanche de emails de trabalho a qualquer
hora, da entrada contínua e maciça de WhatsApps de todo tipo, das mensagens que
nos distraem, daquelas que nos vemos obrigados a responder. Mas tampouco
podemos viver sem elas, e respondemos. Mensagem chama mensagem. Emitimos
pequenas partículas de comunicação, réplica, bobagem, tréplica. É divertido,
sim; às vezes, um pouco chato. E não paramos de alimentar a fera.
“Sofremos os inconvenientes da hiperconexão,
mas nos mantemos conectados”, diz Amparo Lasén, socióloga da Universidade
Complutense de Madri. “Sentimos o esgotamento, mas nos tornamos os solicitantes
dessa hiperconexão. Parece difícil
dizer: “Te amo muito, mas não preciso responder sempre todos os teus
WhatsApps.” diz a socióloga
Lasén
E,
sobretudo, parece difícil deixar claro que em lugar nenhum está escrito que é
preciso responder na hora.
As
expectativas de disponibilidade, afirma Lasén, são cada vez maiores. Exige-se
cada vez mais rapidez na resposta. Algo que, quando as demandas se multiplicam,
e dependendo do ambiente profissional, transforma o trabalho em uma atividade
de malabarismo avançado.
Ocupar-se
digitando no celular entretém; às vezes, vicia; em outras, ajuda a mitigar um
vazio qualquer.
Afinal
de contas, o aparelho sempre oferece algo para fazer, uma missão a cumprir,
algo que dá sentido a um dia que, de resto, provavelmente não será glorioso.
A
emissão contínua de mensagens, em todo caso, não é só coisa nossa. Obedece a
uma lógica, é algo que as grandes empresas tecnológicas fomentam, é algo que
pulsa na arquitetura das redes, que lhes proporciona conteúdo, que permite
monetizar: manter o usuário conectado gera business. “Quanto mais tempo
passamos conectados, mais rentáveis somos para essas companhias”, diz Enric
Puig Punyet. “Se não existisse esse modelo de negócio, não estaríamos todos
levando a Internet no bolso atualmente.”
Estamos,
todos nós, acima das medidas que empresas ou Governos adotem. Todos temos, no
dia a dia, nossa pequena parcela de responsabilidade nesse assunto, e todos
podemos contribuir para uma existência um pouco menos enlouquecida.
Uma
coisa é que alguns não nos deixem desconectar. Outra, é que nos desconectemos.
Fonte: El País
Fonte: El País
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