A febre
amarela que reapareceu no Estado do Rio de Janeiro no mês passadao e voltou a
espreitar áreas urbanas foi um dos principais desafios de saúde pública do
Brasil do século 19 para 20. Eliminar a doença das cidades era condição
essencial para abrir os portos ao comércio marítimo e a imigrantes estrangeiros
e propagar a imagem de um país "moderno".
Novos casos de febre amarela no Rio levaram à busca por vacinas nos
postos de saúde.
Direito de imagem AP
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As lições
deixadas por décadas de esforços para erradicar a doença e seu vetor,
entretanto, foram ignoradas por governos recentes, dizem historiadores ouvidos
pela BBC Brasil.
Ao longo
do século 20, o combate à febre amarela impulsionou a pesquisa científica e o
desenvolvimento de vacinas no Brasil e incluiu capítulos vitoriosos como a
gradual eliminação da doença de áreas urbanas e a erradicação temporária do Aedes
aegypti.
A última
epidemia urbana no país foi registrada em 1942, no Acre. Na mesma década, uma
grande campanha regional capitaneada pela Organização Pan-Americana de Saúde
começou a mobilizar governos na América Latina para se unir na luta contra o
vetor - e declarou, em 1958, ter conseguido livrar onze países do Aedes
aegypti, inclusive o Brasil. Em 1967, o mosquito reapareceu no Pará e
reconquistou, gradualmente, o território nacional.
No início
do século, epidemias de febre amarela eram constantes em grandes capitais
portuárias da América Latina - como Rio, Buenos Aires e Havana.
Os surtos
no Brasil, associados a males como varíola, malária, tuberculose e peste
bubônica - deram ao país a alcunha de "túmulo dos estrangeiros".
"A
febre amarela atingia sobretudo os recém-chegados. Acreditava-se que os
aclimatados ganhavam algum tipo de imunidade", conta o historiador Jaime
Benchimol, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e especialista na
turbulenta história da vacina contra a doença.
A má fama
era justificada por episódios como o tenebroso destino do navio italiano Lombardia.
Em 1895, quase todos os embarcados que chegaram ao Rio morreram de febre
amarela - e uma nova tripulação teve que ser enviada da Itália para resgatar a
embarcação no porto.
No Rio,
último surto urbano há 88 anos
Benchimol
conta que a primeira grande epidemia no Rio ocorreu entre 1849 e 1850, e
atingiu 90 mil pessoas de uma população então de 266 mil. Segundo dados da
época, 4.160 morreram; segundo estimativas não oficiais, foram 15 mil mortos.
"Naqueles
tempos, todo mundo conhecia alguém que tinha morrido de febre amarela, não
importava a classe social", conta o historiador.
A última
epidemia de febre amarela no Rio foi entre 1928 e 1929, quando um surto
inesperado na cidade e em 43 localidades do Estado deixou 436 mortes.
Foi um
choque para a população e a comunidade científica. Acreditava-se que a cidade
tinha se livrado da doença em 1907, após as campanhas bem-sucedidas de Oswaldo
Cruz.
Na última
semana, a notícia de três casos de febre amarela no Estado do Rio - no
município de Casimiro de Abreu - levou a população da capital fluminense a
correr para postos de saúde atrás da vacina, acendendo o alerta na cidade e o
temor de reurbanização da doença.
Na
segunda-feira, a Organização Mundial da Saúde passou a recomendar que turistas
que visitem os Estados do Rio e de São Paulo se vacinem contra a doença. A nova
recomendação exclui as principais áreas urbanas, não se estendendo ainda a Rio,
Niterói, São Paulo e Campinas.
“Símbolo de
atraso”
Campanha sanitária: Serviço de Profilaxia da Febre Amarela. Partida de
uma turma para isolamento de um doente. Direito de imagem Acervo Casa de
Oswaldo Cruz
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No início
do século 20, vencer a doença e outros males "tropicais" eram
condição para catapultar à modernidade um Brasil que havia recém abolido a
escravidão e ainda era uma jovem república.
"As
doenças tropicais eram um símbolo de atraso, a prova de que o Brasil não
conseguia controlar suas epidemias", afirma a historiadora da ciência
Ilana Löwy, pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisa Médica e de Saúde,
na França.
"Eliminar
a febre amarela era necessário para que o país pudesse se abrir para fora, se
abrir para o comércio, imigrantes e turistas", diz Löwy, que é polonesa e
está no Rio como pesquisadora visitante da Fiocruz. Ela é autora do livro Vírus,
mosquitos e modernidade. A febre amarela no Brasil entre ciência e política
(Fiocruz, 2006).
Em muitos
momentos, diz Löwy, o esforço foi uma questão política. Impulsionou o comércio
externo, a política interna (na esteira do avanço das campanhas de saneamento
pelo território nacional) e foi uma porta de entrada para a influência
norte-americana, através do papel central no combate à doença exercido pela
Fundação Rockefeller.
No
projeto modernizador do presidente Rodrigues Alves (1902-1906), o arquiteto e
urbanista Pereira Passos foi nomeado prefeito do Rio com a missão de
"consertar os defeitos da capital que afetam e perturbam todo o
desenvolvimento nacional", nas palavras do então presidente; e o médico e
sanitarista Oswaldo Cruz recebeu a missão de sanear o Rio - o que implicava
combater as três maiores ameaças na época, a febre amarela, a varíola e a peste
bubônica.
Caça a ratos
e mosquitos
Combate à doença impulsionou pesquisa científica e desenvolvimento de
vacinas no Brasil.
Direito de imagem Reuters
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Cruz
virou um herói nacional ao conseguir cumprir sua missão em poucos anos,
implementando a campanha de vacinação obrigatória contra varíola - que causou,
em 1904, a Revolta da Vacina - e combatendo os vetores da peste bubônica e da
febre amarela - respectivamente, ratos e mosquitos.
Em 1907,
recebia a medalha de ouro na premiação do Congresso de Higiene e Demografia de
Berlim, na Alemanha, pelos feitos no combate a doenças no Rio.
"A
conquista de Oswaldo Cruz foi importante porque mudou a percepção do Rio no
exterior", diz o historiador Marcos Cueto, da Casa de Oswaldo Cruz.
"A
cidade começou a ser percebida como um lugar seguro para o comércio marítimo,
que era o motor da economia mundial. Começou a se criar a percepção de que um
país tropical podia ter boa saúde pública, o que até então parecia
impossível", ressalta Cueto, editor científico da revista História,
Ciências, Saúde - Manguinhos.
"Pouco
depois, o presidente (norte-americano) Theodore Roosevelt visitou o Rio e a
Fiocruz. Era uma demonstração de que aqui era um lugar seguro para o
comércio."
Até
então, navios que saíssem da capital tinham que cumprir quarentena antes de
voltar para seus destinos para evitar que doenças como a febre amarela se
alastrassem.
A mudança
contribuiu para atrair mais imigrantes ao país. Naquele tempo, quem vinha para
a "América" ainda ficava dividido entre Brasil, Argentina e Estados
Unidos, lembra Cueto, já que as situações econômicas ainda estavam bem
distantes das que se consolidaram ao longo do século.
Senha de
entrada para os EUA
Campanha sanitária no início do século 20 foi comandada por Oswaldo Cruz,
que recebeu prêmio em Berlim pela sua atuação. Direito de imagem Acervo Casa de
Oswaldo Cruz
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Mas o
poderio dos EUA crescia, e a maior fortuna petroleira do mundo, da família
Rockefeller, criou, no começo do século 20, seu braço filantrópico, a Fundação
Rockefeller. Em 1918, o grupo lançou uma campanha internacional de erradicação
da febre amarela, que teve atuação decisiva no Brasil - e, a partir da era
Vargas, desfrutou de autonomia para gerenciar as atividades de combate à febre
amarela no país.
A
ambiciosa meta da fundação era eliminar a doença nas Américas e, depois, na
África, conta o historiador Rodrigo Cesar da Silva Magalhães, que estudou a
atuação da Rockefeller no Brasil em sua tese de doutorado, transformada no
livro A erradicação do Aedes aegypti - Febre amarela, Fred Soper e saúde
pública nas Américas (1918-1968) (Fiocruz, 2016).
Na época,
ainda se acreditava que a doença se originara no continente americano e depois
chegara à África. Só depois se chegou ao consenso de que o trajeto fora o
contrário, e que o tráfico de escravos havia levado o Aedes aegypti e a
febre amarela para o continente americano.
Magalhães
conta que, em 1923, quando um primeiro acordo de cooperação foi assinado entre
a Rockefeller e o governo brasileiro, os médicos brasileiros viram a chegada
dos técnicos americanos com desconfiança. "Há uma resistência. Eles reagem
se perguntando, 'quem são esses caras que querem chegar para nos ensinar, se a
gente teve Oswaldo Cruz?' Mas quando veem a chance de implementar um programa
nacional, começam a cooperar", relata Magalhães.
A partir
dos anos 1930, a Fundação Rockefeller cresceu em poder e importância no Brasil,
desfrutando de relações mutuamente benéficas com o governo de Getúlio Vargas.
"Vargas
usa a fundação para consolidar seu poder em território nacional, e a fundação
vê nas suas boas relações com o governo a chance de consolidar uma campanha
sanitária a nível nacional", explica Magalhães.
O governo
Vargas aproveitou as frentes abertas pela campanha sanitarista - com times de
inspetores atuando nas cidades para combater o Aedes e buscando alianças
com lideranças locais - para fortalecer a presença do Estado país afora.
"A
saúde pavimentou o caminho para o Estado varguista exercer sua autoridade nos
mais longínquos rincões do Brasil", ressalta Magalhães.
Cobaias
humanas e erros de percurso
A
primeira metade do século 20 vê uma série de avanços no conhecimento sobre a
febre amarela. Em 1900, finalmente se comprovou o que o epidemiologista cubano
Carlos Finlay já defendia havia 20 anos: a febre amarela é transmitida por
mosquitos. Em Havana, iniciou-se a primeira campanha de combate à doença pelo
ataque ao vetor, que seria reproduzida no Rio por Oswaldo Cruz.
No início
dos anos 1930, descobriu-se que homens e mosquitos não são os únicos que
carregam o vírus; estes também vivem, na forma silvestre da doença, em diversas
espécies de macacos, seu hospedeiro natural nas florestas. Assim, mesmo quando
eliminada das cidades, a doença tem "reservatórios naturais" de vírus
na selva, e nunca poderia ser erradicada totalmente.
Em 1937,
depois de anos de pesquisas e incontáveis testes com diferentes cepas do vírus
da febre amarela, finalmente é descoberta uma vacina.
Pesquisadores
do Instituto Oswaldo Cruz e da Fundação Rockefeller chegaram a uma versão
considerada adequada à imunização de grandes contingentes populacionais, e a
vacina começou a ser produzida em larga escala no campus do Instituto Oswaldo
Cruz.
Logo se
procedeu à vacinação em massa em áreas rurais de Minas Gerais e na cidade do
Rio de Janeiro - embora a vacina ainda estivesse "em fase de observação e
experiência", como afirmou à época o influente chefe do escritório da
Fundação Rockefeller para a América do Sul, Fred Soper.
No livro Febre
amarela, a doença e a vacina - uma história inacabada, o historiador Jaime
Benchimol lembra que a pressa gerou protestos.
Na época,
o renomado entomologista Ângelo Moreira da Costa Lima, do Instituto Oswaldo
Cruz, acusou a Fundação Rockefeller de estar usando o povo brasileiro como
"cobaia de grave comprovação experimental", enquanto nos EUA a
decisão fora de protelar o início da vacinação.
"Tais
acusações tiveram pouco eco, mas pelos padrões de hoje a vacinação jamais teria
acontecido (com essa velocidade). Eles chegaram à vacina em 1937 e começaram a
aplicar em contingentes consideráveis de gente. Foram afoitos", considera
o historiador.
Hepatite B
em massa
'Aedes aegypti' chegou a ser erradicado no Brasil na década de 1950. Direito
de imagem AFP
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Nos anos
seguintes, começaram a aparecer complicações. Parte da população vacinada
apresentou um surto de icterícia, que na verdade sinalizava infecção por
hepatite B. Em 1940, foram identificados mil casos entre Rio e Espírito Santo,
e 22 mortes. No ano seguinte, também foram registrados casos de encefalite como
efeito colateral da vacina.
Pesquisadores
chegaram à conclusão de que a icterícia era ocasionada pelo uso de soro humano
para fabricar as vacinas, o que foi interrompido. O soro estaria transmitindo
um agente patogênico ainda desconhecido - e que mais tarde seria identificado
como hepatite B.
O
problema foi superado na fabricação brasileira, mas foi nos EUA que teve
consequências mais graves. O laboratório central da Fundação Rockefeller em
Nova York seguiu com o uso de soro humano, para não retardar, em plena Segunda
Guerra Mundial, a produção de milhões de vacinas.
Em 1942,
recém-entrados na guerra e temendo um ataque biológico do Japão, os EUA
decidiram vacinar todos os seus soldados. Meses depois, 28 mil casos de
icterícia foram identificados entre eles, resultando em 62 mortes.
De acordo
com Benchimol, estudos realizados anos mais tarde com veteranos estimaram que a
vacinação contra febre amarela tenha levado a 330 mil casos de hepatite B no
Exército americano.
"Assim
se produziu a maior epidemia de hepatite B na história", diz o
historiador.
“Testemunho
do fracasso”
Jaime
Benchimol lembra a experiência bem-sucedida no combate ao Aedes aegypti
no passado e critica a falta de uma política séria de combate ao vetor. Para
ele, o foco na vacina não basta como estratégia de controle.
"Essa
tentativa atabalhoada de vacinar todo mundo é o que se pode fazer agora, mas é
o testemunho do fracasso, da incompetência deste governo e dos anteriores de
lidar com essa questão", considera.
O
historiador Rodrigo Cesar de Silva Magalhães diz que a estratégia de associar a
vacinação nas áreas rurais ao combate "sem trégua" ao Aedes
aegypti nas cidades havia sido responsável pelos maiores sucessos nas
últimas décadas.
"Esse
binômio foi irresponsavelmente abandonado pelos últimos governos, e é por isso
que estamos vivendo esse cenário epidêmico", critica.
Para o
historiador Marcos Cueto, houve uma "complacência" das autoridades
políticas e sanitárias no controle ao Aedes aegypti.
"Na
segunda metade do século 20, as cidades da América Latina tiveram crescimento
muito mais rápido que sua infraestrutura sanitária", diz Cueto. "Os
resultados são cidades sem água encanada e esgoto, com as condições ideais para
criar o mosquito."
Os
jornais, afirma, gostam de estampar em suas páginas fotos do mosquito ampliado
como um "Godzilla", como se fosse o único algoz.
"Isso
reduz o problema e não leva em conta aspectos sociais e humanitários. O grande
problema é ignorar a necessidade de investir nas deficiências de esgoto e água
nas áreas urbanas", ressalta.
O
problema pode ser visto em toda parte, a olho nu - mesmo às portas da Fundação
Oswaldo Cruz, o principal centro de pesquisas epidemiológicas do Brasil. A
pesquisadora visitante Ilana Löwy chama atenção para os canais de água parada,
sem saneamento, logo ao lado da entrada, na favela de Manguinhos.
"Enquanto
não se resolver a questão do saneamento, os mosquitos não vão para lugar
nenhum", lembra Löwy.
"Vi
que o governo espalhou muitos slogans por aí dizendo que um mosquito não é mais
forte que um país. Ficou bonito", considera a historiadora. "Mas não
acho que os mosquitos vão se impressionar muito."
Fonte: BBC
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