O artigo científico Doença de Chagas: A Nova
HIV/Aids das Américas causou polêmica ao sugerir que o mal transmitido pelo
inseto popularmente conhecido como barbeiro esteja em franca expansão no
continente.
O
estudo diz que a doença ameaça até os Estados Unidos, onde imigrantes
latino-americanos seriam um dos potenciais focos de infecção.
Escrito
por dez cientistas baseados nos EUA e no México, o artigo foi publicado no Journal
of Neglected Tropical Diseases (focado em doenças tropicais negligenciadas por
políticas de saúde pública) na última terça-feira.
Para
os cientistas a situação da doença tropical no continente hoje em dia tem
semelhanças com a epidemia de HIV registrada no início dos anos 1980. Falta de
medicamentos, alto custo de tratamento e a transmissão por transfusão sanguínea
seriam parecidos.
Também
seria parecido o estigma em torno de grupos atingidos: pobres, agricultores e
imigrantes, no caso da Doença de Chagas atualmente, e homossexuais, no caso da
Aids há 30 anos.
O
estudo destaca o fato de que em alguns países como Paraguai e Bolívia o estágio
de controle e tratamento da doença continua sendo muito deficiente.
Inseto barbeiro (Triatoma Infestans) pode
transmitir o parasita Trypanosoma cruzi,
que causa a doença
|
Comparação
forçada
Especialistas
consultados pela BBC Brasil dizem que vários pontos da comparação não se
aplicam a grande parte da região e que o cenário alarmante estaria restrito a
países como México e Bolívia, onde a doença ainda não foi controlada.
Já
a ONG internacional Médicos sem Fronteiras, também ouvida pela BBC Brasil,
indica que o estudo lança os holofotes sobre uma doença muito negligenciada e
que é preciso avaliar os números e o controle em alguns países com cautela.
João
Carlos Pinto Dias, que já chefiou o Programa Nacional de Combate à Doença de
Chagas brasileiro e é membro do Comitê de Doenças Tropicais Neglicenciadas da
Organização Mundial da Saúde (OMS), diz que o "trabalho é válido e
provocador", embora hajam comparações "forçadas".
.
"São
formas de chamar a atenção para algo geralmente muito negligenciado", diz
o pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz, que tem mais de 220 artigos científicos
e sete livros publicados sobre o assunto.
Pinto
Dias diz que a comparação é "forçada", sobretudo por se referir aos
anos iniciais da epidemia do HIV, quando a contaminação aumentava de forma
exponencial. "No caso da doença de Chagas estamos longe disso. Não se
trata de um momento de expansão".
Ele
acrescenta que o Brasil está numa situação "bastante confortável",
com uma diminuição drástica do contágio. "Nos anos 1970 tínhamos mais de
100 mil novos casos por ano. Hoje temos entre 150 e 200 novas contaminações
anuais".
Alerta
Para
Lucia Brum, consultora de doenças emergentes e re-emergentes dos Médicos sem
Fronteiras, é necessário fazer um alerta para o fato de que o país se preocupa
muito com o controle vetorial (por diferentes espécies do inseto barbeiro) da
doença, mas o tratamento aos infectados continua deficiente.
"Nossa
grande bandeira é defender que as pessoas devem ter acesso ao diagnóstico e
tratamento da doença. De cada dez pessoas infectadas apenas uma sabe que é
portadora do parasita", diz.
Em
toda a América Latina são atualmente 8 a 9 milhões de infectados e no Brasil
cerca de 2 milhões. Nos Estados Unidos vivem cerca de 300 mil pessoas com o mal
de Chagas, em sua maioria imigrantes latino-americanos vindos de regiões mais
pobres.
A
especialista acrescenta que em mais de 13 anos de atuação da ONG nas Américas,
90 mil pessoas passaram por exames e cerca de 6.500 testaram positivo.
"Se
fala muito sobre o controle da transmissão e chega-se a considerar o mal de
Chagas como 'doença rara', mas o fato é que nos nove Estados da região
amazônica o mal de Chagas ainda é uma doença emergente, em expansão, e o
Ministério da Saúde sabe disso", indica.
Bolívia
e México
O
especialista explica que países como Brasil, Chile, Uruguai e partes da
Argentina encontram-se em situação avançada de controle da doença. Outros como
Colômbia, Equador, Honduras e Peru estão em estágio intermediário.
A
situação descrita pelo estudo americano, de descontrole sobre as transfusões
sanguíneas, falta de medicamentos e de políticas públicas e aumento dos casos,
no entanto, se aplica à Bolívia e ao México.
"No
caso boliviano, no final dos anos 1990 o governo obteve recursos do Banco
Mundial e montou uma equipe ótima, mas com o passar dos anos as administrações
subsequentes abandonaram o programa nacional", diz Pinto Dias.
"No
México, desde 1949 cientistas e pesquisadores de renome vêm alertando o governo
sobre a necessidade de se montar um programa consistente para conter a doença.
Uma histórica falta de vontade política, no entanto, fez com que o país jamais
montasse ações públicas para conter o problema", acrescenta.
O
artigo americano aponta ainda o Paraguai como um dos países onde o combate à
doença é deficiente, sobretudo pela falta do medicamento que pode levar à cura
nos três primeiros meses após o contágio.
'Doença
rara'
Para
Jarbas Barbosa, secretário de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, o mal
de Chagas já é considerado "doença rara" no Brasil.
"O
que falta a alguns países é alcançar o que o Brasil já fez. Precisam acelerar o
processo de eliminação da transmissão vetorial e depois pela transmissão de
sangue", disse em entrevista à BBC Brasil.
Barbosa
diz que o contágio vetorial foi considerado oficialmente eliminado no Brasil
pela OMS em 2006.
Lucia
Brum, dos Médicos sem Fronteiras, no entanto, diz que há cerca de 140 espécies
de barbeiro, potencialmente, transmissoras no Brasil, e o contágio foi
interrompido somente para o Triatoma infestans.
"É
fato que o Triatoma infestans era responsável por 80% dos casos de transmissão
vetorial, mas ainda há mais de cem espécies que não foram controladas. Ainda se
tem muito a fazer", diz, acrescentando que a negligência com relação à
doença continua sendo um grande empecilho.
Quanto
às contaminações por transfusão sanguínea e congênita, de mãe para filho, os
especialistas apontam para a idade média de 35 a 40 anos entre as mulheres, fora
de idade fértil, e para um controle em bancos de sangue há mais de 20 anos, o
que coloca o Brasil em posição confortável.
No
país a principal forma de contágio atualmente é pela via oral, quando o
barbeiro ou suas fezes contendo o parasita são moídos junto a sucos e
alimentos.
A Doença de Chagas
Carlos Chagas |
A doença foi
descoberta em 1909 pelo médico brasileiro Carlos Chagas. Causada por um parasita
transmitido pelo inseto barbeiro (Trypanosoma cruzi e suas variações), pode ser
letal mas apresenta grande taxa de cura se tratada nos três meses seguintes à
contaminação.
Embora muito
rara, há uma variação da doença que pode ser fatal pouco tempo após o contágio.
Atualmente entre
60% e 70% das pessoas infectadas pelo parasita vivem em média de 65 a 70 anos.
Na década de 1970 a expectativa de vida era de 30 a 40 anos.
Entre 70% e 80%
dos infectados tratados não desenvolvem problemas causados pelo mal de Chagas,
mas de 20% a 30% podem desenvolver doenças cardíacas e intestinais. Deste
segundo grupo, até 20% podem ter morte súbita devido ao inchaço exacerbado do
coração ou intestinos.
A
eliminação total do parasita é praticamente impossível para os infectados.
Medicamentos existentes só conseguem obter a cura se administrados até três
meses após o contágio. Pacientes mais jovens têm mais chances de sucesso.