Houve um
tempo em que nascer em terras altas ou baixas do Vale do Colca, que hoje faz
parte da região de Arequipa, no sul do Peru, determinava o formato da cabeça
dos bebês.
Entre os
anos 1100 e 1450, as famílias dos grupos étnicos predominantes nesta região
andina, os Collaguas e os cabanas, modificavam o crânio dos recém-nascidos
usando bandagens de pano - para que a cabeça das crianças tivesse formato de cone
- e pedaços de madeira - para deixar a parte de trás da cabeça mais achatada.
A forma longa e estreita da cabeça era uma característica distintiva do collaguas, mas ao longo do tempo se espalhou por todo o Vale do Colca | Foto: Dan Chamberlain/Cornell University |
Longe de
ser uma simples questão estética, a prática teve desdobramentos sociais e
políticos importantes - e poderia ter influenciado o vínculo que essas antigas
civilizações tiveram com o Império Inca, que dominou a região a partir da
segunda metade do século 15.
"Antes
do meu estudo, nós só tínhamos os relatos dos espanhóis dos tempos coloniais (a
respeito das intervenções que modificavam o formato do crânio)", disse à
BBC o antropólogo americano Matthew Velasco, pesquisador da Universidade
Cornell, nos Estados Unidos.
Seu
trabalho, publicado neste mês na revista científica Current Anthropology,
revelou que o que se acreditava ser um marcador étnico exclusivo dos Collaguas
era, na verdade, "uma prática muito mais dinâmica, que foi se
transformando através do tempo", explicou Velasco.
O que a
princípio serviria para distinguir os Collaguas dos cabanos acabou unindo as
duas etnias e os favorecendo na relação com os incas.
Duas formas
Image caption Os Collaguas viviam nas terras altas; os Cabanas, nas terras baixas do vale | Foto: David Rodríguez Sotomayor/Projeto Bioarqueológico Coporaque |
Segundo os
documentos coloniais da época, os Collaguas enfaixavam os crânios dos bebês
para dar às cabeças deles uma forma mais larga na base e estreita na parte
superior.
O
objetivo, detalhavam os registros espanhóis, era que as cabeças tivessem uma
forma similar ao vulcão Collaguata, considerado o lugar de origem mítica dessa
etnia.
Os Cabanas,
por sua vez, falavam quíchua e cultivavam milho nas terras férteis da região
baixa do vale.
Eles
davam aos crânios dos bebês uma forma mais achatada e alargada, pressionando a
parte de trás da cabeça. "Provavelmente usavam placas de madeira (ou seja,
materiais mais duros) para conseguir esse formato", explicou Velasco.
Ao
analisar centenas de restos ósseos humanos de vários túmulos no Vale do Colca,
Velasco descobriu que, antes de 1300, a maioria das pessoas não apresentavam
qualquer modificação no formato de suas cabeças.
A
prática, observada em somente 39,2% dos crânios até essa época, passou a
representar 73% depois desse ano, contabilizando tanto as intervenções que
normalmente faziam os Collaguas quanto as dos Cabanas.
Com o
passar do tempo, contudo, a forma de cone começou a predominar em ambas as
regiões do vale.
Matthew Velasco pesquisou a questão com o apoio da comunidade de Coporaque, descendente dos Collaguas | Foto: David Rodríguez Sotomayor/Projeto Bioarqueológico Coporaque |
Essa
homogeneidade crescente no formato das cabeças dos bebês de ambas as etnias
contribuiu para a criação de uma nova identidade coletiva que "pode ter
reforçado os laços sociais entre as elites durante um tempo de muita guerra
segmentação social", afirma Velasco.
Como o
estudo do antropólogo se concentra no que aconteceu na região antes de 1450, ou
seja, antes da formação do Império Inca, o pesquisador acredita que "a formação
de uma identidade mais integrada também poderia ter servido de respaldo às
elites Collaguas em suas interações com os incas ", explicou à BBC.
"Há
muitas evidências de que os incas e os Collaguas chegaram a um acordo, que
implicou o respeito às práticas e instituições tradicionais dos últimos por
parte dos primeiros. Ao mesmo tempo, os incas impuseram formas de tributo a
eles", acrescentou.
Velasco
reconhece que "talvez, a formação de uma identidade compartilhada e forte
tenha ajudado as elites dos Collaguas a chegar a um acordo mais benéfico com os
incas (quando eles dominaram a região)", mas ressalva que, para provar
essa hipótese, serão necessárias mais informações arqueológicas do Vale do
Colca, referentes à época do Império Inca.
O estudo publicado na Current Anthropology envolveu a análise de centenas de restos de ossos humanos de túmulos no Vale do Colca | Foto: Projeto Bioarqueológico de Matthew C. Velasco/Coporaque |
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