Uma vergonha para nós que defendemos as questões ambientais.
Ivo
Lubrinna vem extraindo ouro há mais de 30 anos da floresta em Itaituba, no
Pará. É uma atividade notoriamente suja, já que as equipes removem uma camada
de solo na floresta, e ao longo de margens de rio, e usam mercúrio e outros
poluentes para retirar o metal precioso da lama.
Nos
últimos anos, Lubrinna passou a ter um segundo emprego: secretário de Meio
Ambiente dessa cidade de 100 mil habitantes, porta de entrada para o mais
antigo parque nacional e seis reservas naturais na vasta floresta amazônica
brasileira. Por isso, é seu trabalho proteger a área da depredação de
madeireiros, caçadores, posseiros e garimpeiros.
Seu
duplo papel divide impecavelmente seu dia de trabalho: pela manhã, como
regulador, à tarde, garimpeiro. "Tenho de ser bonzinho de manhã", diz
Lubrinna, de 64 anos, corpulento, calvo, com a voz de barítono. "À tarde,
eu preciso me defender."
Até
recentemente, o evidente conflito de interesses não teria muita importância
nesta fronteira livre de controle dos órgãos legais e com conflitos
frequentemente violentos, motivados por disputa por terra e recursos. Era
tarefa do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama)
policiar a Amazônia do jeito melhor que pudesse.
Mas
no ano passado, a presidente Dilma Rousseff autorizou uma mudança pela qual boa
parte da autoridade ambiental foi transferida da noite para o dia a governos
estaduais e municipais.
Dos
168 escritórios regionais que o Ibama possuía alguns anos atrás, 91 foram
fechados, de acordo com funcionários da agência. Lubrinna diz que agentes do
Ibama costumavam multá-lo e a outros mineiros por violações da lei. Agora, ele
lidera uma equipe que inspeciona áreas de mineração. Até o momento, diz,
aplicou poucas multas.
A
transferência da inspeção para o controle local é uma das muitas mudanças
adotadas na gestão de Dilma, as quais, em conjunto, constituem um recuo total
na política ambientalista progressista do governo federal de quase duas
décadas.
Vista aérea de uma área desmatada ilegalmente próximo ao Parque Nacional da Amazônia em Itaituba, no Estado do Pará, em maio. 25/05/2012 REUTERS/Nacho Doce |
Nos
19 meses desde a posse de Dilma foram revertidas normas de longa data que
haviam contido o desmatamento e protegido milhões de quilômetros quadrados de
bacias hidrográficas.
Ela
baixou uma medida provisória que encolheu ou redefiniu os limites de sete áreas
de preservação ambiental, abrindo caminho para a construção de barragens para
usinas hidrelétricas e outros projetos de infraestrutura, e para legalizar a
posse de terra por fazendeiros e garimpeiros.
E
a presidente reduziu o ritmo até o ponto de quase estagnação no processo,
ininterrupto durante os três governos anteriores, de preservar terras para
parques nacionais, reservas de vida selvagem e outras "unidades de
conservação".
NECESSIDADE
ECONÔMICA
A
presidente é clara em seu raciocínio: promover maior desenvolvimento na região
da floresta amazônica, uma área sete vezes o tamanho da França, é essencial
para manter o tipo de crescimento que ao longo da última década levou 30
milhões de brasileiros a saírem da pobreza e tornou o país a sexta maior
economia do mundo.
O
governo pretende construir 21 barragens na Amazônia até 2012 ao custo de 96
bilhões de reais, o que foi planejado quando Dilma ainda trabalhava no governo
de seu mentor e antecessor, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. As
barragens são necessárias, diz ela, para suprir a demanda de energia dos
consumidores, que aumentam cada vez mais no Brasil.
E
o Brasil ainda tem 60 milhões de pessoas vivendo na pobreza. "Tenho de
explicar para as pessoas como é que elas vão comer, como é que elas vão ter
acesso à água e como é que elas vão ter acesso à energia", disse ela num
discurso em abril.
Essa
mensagem é bem recebida por boa parte dos brasileiros. Dilma desfruta da
invejável taxa de aprovação de 77 por cento, de acordo com uma pesquisa
divulgada em junho.
Ela
recebeu 83 por cento de suas contribuições de campanha, na eleição de 2010, de
corporações, a maioria dos setores de alimentos, agricultura, construção e
engenharia, prestes a se beneficiarem de uma abertura maior da Amazônia ao
desenvolvimento, segundo uma análise de arquivos eleitorais feita pelo
blogueiro e analista de informações José Roberto de Toledo.
Assessores
de Dilma negam quaisquer alegações de um toma lá dá cá; outros candidatos
receberam recursos das mesmas empresas em proporções semelhantes.
O
movimento ambientalista brasileiro, bastante consolidado, está chocado.
As
políticas de Dilma, dizem eles, põem em risco a maior floresta tropical do
mundo, reserva de um oitavo da água doce do planeta, fonte primária de oxigênio
e abrigo de espécies animais e vegetais incontáveis e ainda não descobertas,
assim como dezenas de milhares de índios nativos da região.
O
ganho econômico no curto prazo, segundo críticos de Dilma, não vale o custo
potencial a longo prazo para o meio ambiente do planeta, e também para a
economia do Brasil.
"Este
é um governo disposto a sacrificar os recursos de milhares de anos pelo lucro
de algumas décadas", disse a ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva,
pioneira do movimento ambientalista brasileiro.
A
corrida pela exploração da região já fez surgir focos de conflito.
O
mais conhecido é Belo Monte, um projeto de 26 bilhões de reais para construir a
terceira maior barragem do mundo no Rio Xingu, um tributário do Rio Amazonas no
Pará, onde está localizada Itaituba.
Objeto
de intensa cobertura da mídia, ações na Justiça e oposição de pessoas de
projeção internacional, como o cineasta hollywoodiano James Cameron, Belo Monte
ameaça deslocar milhares de índios de suas terras.
E
já está atraindo milhares de migrantes para um posto avançado na selva, em
Altamira, que se transformou em uma cidade repentinamente próspera, onde os
preços de alimentos e propriedades mais do que dobraram no último ano.
No
Acre, o Estado mais a oeste no Brasil, a retirada de agentes do Ibama abriu as
portas a investidas e disputas entre madeireiros e traficantes de drogas
provenientes do Peru, ameaçando o parque da Serra do Divisor, criado uma década
atrás.
E
no Maranhão, fazendeiros, madeireiros e a população local com frequência entram
em confronto no entorno da Reserva Biológica do Gurupi. Lá, a extração ilegal
de madeira afetou cerca de 70 por cento da floresta da reserva, um processo que
os cientistas dizem estar acelerando a expansão do clima mais árido no nordeste
do país.
A
dinâmica posta em marcha pela mudança de política empreendida por Dilma é
amplamente visível dentro e ao redor do Parque Nacional da Amazônia, uma porção
de floresta do tamanho da Jamaica, na margem oeste do Rio Tapajós.
Foi
o primeiro parque nacional na região amazônica brasileira, criado em 1974 pela
ditadura militar para mitigar o impacto de políticas que haviam estimulado
migrantes pobres a se assentar na área.
No
fim dos anos 1980, e ao longo da década seguinte, o parque se beneficiou do
momento em que o jovem governo democrático assumiu uma política ambientalista
considerada uma das mais agressivas da época, posta em prática por agentes
federais. Na década passada, o presidente Lula intensificou o policiamento dos
parques, reduzindo o desmatamento ao nível mais baixo já registrado.
Mas
o boom econômico durante o governo Lula teve seu preço. Enquanto o Brasil se
tornava o maior exportador mundial de carne bovina e de soja, a floresta
tropical sucumbia ao corte raso das árvores para a agricultura. Nas colinas
perto de Itaituba, a extração de madeira e a mineração prosseguiram --uma parte
é legal, outra, não.
Para
impor a ordem, em 2006 o governo criou uma zona-tampão de seis reservas em
terras próximas, uma área mais de seis vezes o tamanho do Parque Nacional da
Amazônia, na qual a atividade poderia ser regulada.
ÁGUAS
AGITADAS
Quando
Maria Lucia Carvalho assumiu o cargo de chefe do Parque Nacional da Amazônia
três anos atrás, ela estava ávida por atrair mais visitantes e reprimir os
abusos. Os agentes do Ibama estavam nas proximidades para ajudar os
funcionários do parque a lidar com os persistentes caçadores e posseiros.
"Eu tinha esperança mesmo", diz ela.
O
sentimento não durou muito. No início de 2010, ela ouviu rumores de que uma das
barragens de Dilma seria construída dentro do parque, nas corredeiras do
Tapajós.
Num
ponto onde o rio tem largura de três quilômetros, as corredeiras são renomadas
como um habitat de muitas espécies de peixes exóticos, um ponto-chave de
passagem de bagres migratórios e fonte de água para animais selvagens em risco
de extinção, incluindo o jaguar e a ararajuba.
Alguns
meses depois, agentes do parque pegaram funcionários da companhia estatal de
eletricidade realizando pesquisa não autorizada na área, e os multaram.
Depois
que Maria Lucia deu declarações à TV contra o projeto, ela foi chamada a
Brasília pelo chefe do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
(ICMBio), órgão federal que administra as unidades de conservação no país.
"Me
disseram que esse é um plano do governo e que eu sou governo e, portanto, eu
não poderia criticar o projeto", diz ela.
O
ICMBio não quis fazer comentários sobre o encontro.
Em
dezembro do ano passado, Dilma sancionou uma lei que dá aos Estados e governos
municipais autoridade ambiental sobre terras que não foram licenciadas pela
União.
Na
visão de Brasília, autoridades locais estão mais bem posicionadas para garantir
que madeireiros, garimpeiros e outros que extraem recursos da floresta façam
isso com as licenças apropriadas em áreas onde é permitido.
Outros,
contudo, dizem que as autoridades locais não têm os recursos necessários para
policiar a Amazônia e são mais suscetíveis à intimidação e propina. A própria
escala faz com que a aplicação da lei seja um desafio na Amazônia.
Em
poucos meses, os agentes florestais do Ibama de Itaituba partiram, deixando
Maria Lucia e os colegas do ICMBio policiando a área sozinhos, exceto por
Lubrinna, o secretário de Meio Ambiente de Itaituba, que por acaso também é
minerador de ouro, e sua pequena equipe.
Lubrinna
leva tanto tempo fiscalizando sua equipe de mineradores quanto dedica a seu
cargo municipal, diz. Ele negou repetidos pedidos de mostrar ao repórter da
Reuters sua operação de mineração. Descreveu-a como uma área de 180 quilômetros
quadrados espalhada pelo sudoeste de Itaituba, a maior parte na floresta
nacional.
É
difícil obter permissão de mineração na área, diz ele, e sua autorização não
cobre toda a região onde ele opera. "O governo cria leis que são difíceis
de seguir", diz. "A gente precisa ganhar a vida."
DERRUBADA
DE ÁRVORES
Dilma
recentemente divulgou cifras mostrando que a taxa de desmatamento na Amazônia caiu
para um nível recorde de baixa nos 12 meses encerrados em julho de 2011, o mais
recente período anual com dados disponíveis.
A
terra total desflorestada --cerca de 6.400 quilômetros quadrados, praticamente
o tamanho do Estado norte-americano do Delaware-- diminuiu 77 por cento em
relação a 2004, uma tendência que, segundo dados preliminares, continuou nos
últimos meses.
Críticos
dizem que ainda é muito cedo para refletir o impacto da agenda da presidente.
"Os números estão prestes a ir na outra direção", diz Adriana Ramos,
dirigente do Instituto Socioambiental, um grupo ativista. "Para começar,
eles estão alterando a arquitetura das regulamentações que propiciaram a
queda."
O
fundamento dessa arquitetura é o "código florestal" do Brasil, um
conjunto de leis inalterado por décadas que estabelece o percentual e o tipo de
terra que agricultores, extrativistas de madeira e outros devem deixar intactos
quando desmatam uma área.
O
poderoso lobby agropecuário pressionou seguidamente por mudanças que no começo
deste ano foram aprovadas no Congresso. Embora Dilma tenha vetado partes da lei
que iriam garantir anistia para abusos cometidos no passado, ela está
negociando com os parlamentares alterações que os ambientalistas temem possam
tornar mais fácil extrair madeira de áreas que até agora estavam fora do
alcance dos desmatadores.
Quando
um guarda de parque recentemente visitou José Lopes da Silva, um posseiro na
margem leste do Parque Nacional da Amazônia, o agricultor se queixou de uma
multa de cerca de 15 mil reais que ele recebeu no ano passado por cortar
árvores adjacentes a seu milharal. "Por que eu fui multado...?", ele
perguntou "... se a lei vai mudar?"
"A
lei ainda é a lei", respondeu o guarda.
Perto
de Campo Verde, uma parada de caminhões 30 quilômetros a sudeste de Itaituba,
jipes e picapes em mau estado trafegam pela estrada durante o dia. Depois do
anoitecer, grandes caminhões emergem das rotas dos madeireiros que atravessam
áreas protegidas. Carregados com três troncos com diâmetro maior do que as rodas
dos caminhões, eles se dirigem para oeste, para as serrarias ao longo do
Tapajós.
Com
poucos agentes federais na área para patrulhar as reservas, a destruição fica
evidente somente quando a área se torna grande o suficiente para ser detectada,
se um dia sem nuvens permitir, por satélites ou a cara e custosa vigilância
aérea. Além disso, como o governo estadual concede licenças para os depósitos
de madeira, as autoridades federais as inspecionam agora com menos frequência.
"De
que adianta, se não somos mais a máxima autoridade?", diz um agente
federal que pediu para não ser identificado.
A
tarefa também é cada vez mais perigosa, já que proprietários de terras,
madeireiros e seus capangas entram em confronto pela riqueza da floresta.
Em
março, homens armados emboscaram agentes ambientais do governo federal que
retornavam de uma fiscalização em um acampamento ilegal de extração de madeira,
em uma reserva natural ao sul de Itaituba. Os agentes conseguiram se
desvencilhar do ataque.
No
ano passado, um destacado ambientalista e sua mulher foram assassinados no
Pará, depois que denunciaram exploração ilegal de madeira perto de sua casa.
O
padre João Carlos Portes, de Campo Verde, disse que recentemente homens armados
ameaçaram "pulverizar a paróquia com balas", depois que ele se
recusou a permitir uma missa fúnebre para um madeireiro e assassino confesso,
morto por rivais no negócio.
Portes,
que também é o representante local da Pastoral da Terra, um grupo religioso
voltado para a redução da violência, trabalho escravo e outros abusos no
interior do país, diz que as mudanças recentes na política ambientalista
significam que "as coisas somente vão ficar piores."
LUTA
FÚTIL
Em
janeiro, Dilma anunciou a medida provisória que reduz parte da área da Amazônia
e seis outras reservas para abrir caminho a represas e legalizar assentamentos
ilegais. Mesmo considerando que a decisão ainda terá de enfrentar
questionamentos na Justiça, o Congresso a transformou em lei em junho.
A
barragem da hidrelétrica no Rio Tapajós vai inundar uma vasta porção de mata,
assim como a vila de Pimental, com cerca de 800 pescadores e pequenos
agricultores na margem leste do rio, na área da represa.
Os
moradores estão revoltados com o governo, que ainda não deu detalhes sobre a
barragem, se eles terão de ser removidos e compensados ou como se dará todo o
processo.
"Estamos
completamente no escuro", diz Luiz Matos da Lima, de 53 anos, agricultor e
dono de uma mercearia em Pimental.
Há
pouco tempo, alguns deles expulsaram da cidade pessoas a serviço da empresa de
eletricidade e destruíram marcos de concreto colocados na área.
O
Ministério de Minas e Energia afirma que os detalhes finais do projeto,
previsto para ser concluído em 2017, ainda estão em estudo.
Foi
a autorização dada por Dilma à barragem que tirou o que restava do entusiasmo
de Maria Lucia por seu trabalho na chefia do parque na Amazônia. Recentemente
ela pediu transferência, candidatando-se a um posto em um parque no árido
nordeste.
"Eles
não podem fazer uma barragem lá", diz ela, "mas, quem sabe, talvez
eles façam uma usina nuclear."
Enquanto
isso, em junho, agentes do Ibama no aeroporto de Belém, no Pará, prenderam um
homem que viajava levando um refrigerador com uma tartaruga amazônica
congelada, de 10 quilos, que está sob risco de extinção.
Os
agentes apreenderam a carcaça, multaram o homem em 5 mil reais e abriram uma
ação criminal contra ele.
O
viajante que levava a tartaruga: Ivo Lubrinna.
O
secretário de Meio Ambiente de Itaituba disse aos agentes que a carne da
tartaruga seria servida em uma festa para seu filho. Lubrinna disse que vai
recorrer da multa e da acusação criminal.
Ele
observa, também, que embora a tartaruga esteja sob risco de extinção, comê-la é
"culturalmente aceitável" na região amazônica.
Obs: Comer alguns insetos também fazem parte da cultura amazonense, porque ele não serviu tal prato, como entrada, na festa do filho?
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