Quando foi a última vez que o/a leitor/a observou vaga-lumes
zanzando na escuridão? Ou contemplou a Via Láctea e a imensidão do universo a
olho nu? Provavelmente, para os moradores de grandes centros urbanos, a
resposta será “há muito tempo”. Com o aprimoramento das tecnologias de
iluminação e o crescimento das cidades, a produção e a distribuição de luz
artificial aumentaram enormemente – a níveis excessivos e desnecessários. Os
efeitos pouco divulgados dessa ‘poluição luminosa’ estão relatados neste artigo.
Elaterídeo
na região de Porto Feliz, em São Paulo. (foto: Oskar Hagen)
Elaterídeo
na região de Porto Feliz, em São Paulo. (foto: Oskar Hagen)
O domínio do
fogo, e consequentemente da luminosidade, possibilitou ao ser humano exercer
grande controle sobre o meio em que vivia, proporcionando imensurável vantagem
seletiva. A luz também foi fundamental para incontáveis avanços
tecnológicos, que nos proporcionam mais comodidade e praticidade. Mas, apesar
de a luz ser em muitas culturas símbolo do progresso, de pureza e beleza, ela
também tem seu lado sombrio.
A poluição
luminosa – toda luz desnecessária ou excessiva produzida artificialmente – é a
que mais cresce no planeta e, infelizmente, os impactos do seu mau uso e os
mecanismos com os quais podemos minimizá-los têm pouquíssimo destaque quando
comparados aos de outros tipos de poluição.
O ano passado
foi declarado pela Organização das Nações Unidas (ONU) como o Ano Internacional
da Luz e das tecnologias baseadas em luzes, celebrando as vantagens
energéticas, econômicas, habitacionais e de comunicações decorrentes delas.
Enquanto se come- morava a luz com grande alarde, pouco se escutou ou leu sobre
poluição luminosa, salvo por uma edição da revista Proceedings of the Royal
Academy com artigos relacionados ao tema.
Não só seres
humanos, mas insetos, aves e até o zooplâncton sofrem consequências da poluição
luminosa. Na natureza intacta, as únicas fontes de luz durante a noite eram as
estrelas e a luz refletida pela Lua. Os animais, incluindo os humanos, e as
plantas evoluíram nos regimes de luz natural; portanto, é fácil imaginar que
sofram direta ou indiretamente com as alterações artificiais da luz noturna.
Poluição luminosa, vaga-lumes e meio ambiente
Um exemplo dessa
adaptação e dependência dos regimes de luz natural são os vaga-lumes.
Coleópteros das famílias Lampyridae, Phengodidae e Elateridae são especialmente
vulneráveis à poluição luminosa. Vaga-lumes são bioluminescentes – emitem a
própria luz – e utilizam essa luz como sinal para se reproduzirem, afugentar
predadores e até para predarem outros vaga-lumes. A finalidade mais comum da
bioluminescência para esses insetos é a corte, em que a fêmea e/ou o macho
sinalizam sua posição para atrair parceiros/as. Para que tais sinais sejam
vistos, no entanto, é preciso haver escuridão.
Buscando o
mínimo de gasto energético e máxima eficiência, vaga-lumes iniciam suas
atividades bioluminescentes quando a noite atinge um determinado nível de
escuridão. A luminosidade ideal varia de espécie para espécie, mas, em
geral, o ditado popular ‘vaga-lume não pisca em noites de Lua cheia’ expõe uma
verdade. Cidades ou áreas iluminadas são como áreas de ‘constante Lua cheia’
para os vaga-lumes, levando a um forte declínio em suas populações, decorrente
da redução nos encontros entre os pares. Em muitos locais no mundo, foi
registrada a diminuição ou o desaparecimento de vaga-lumes em áreas urbanas e
industrializadas, inclusive no Brasil.
Insetos são
atraídos pela luz artificial. (foto: Oskar Hagen)
|
Apesar de outros
fatores também poderem estar envolvidos no desaparecimento dos vaga-lumes,
recentemente foi comprovado que a iluminação artificial direta, especificamente
de luz branca, reduz de forma significativa, a atividade de vaga-lumes.
Ao longo de três
anos, pouco antes e após a construção de uma quadra de esportes com holofotes
de multi vapor metálico na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), campus
Sorocaba (SP), populações de vaga-lumes no entorno foram monitoradas. Três
áreas com pasto de braquiária e fragmentos de floresta atlântica em fase de
regeneração foram escolhidas para o estudo. Uma delas recebia iluminação
direta dos holofotes da quadra; outra, luz indireta e uma terceira, mais
afastada, era a menos iluminada pelos holofotes da quadra.
Áreas
de estudo em Sorocaba (SP), de dia e à noite. (fotos: Oskar Hagen)
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Em noites de
jogo, com os holofotes acesos, a atividade de vaga-lumes do gênero
Photinus diminuiu até 80% em relação às noites as luzes apagadas. A
influência foi mais forte em áreas mais próximas à quadra, e a ocorrência de
vaga-lumes declinou de ano para ano, demonstrando que simples holofotes podem
alterar a vida silvestre de maneira significativa.
Por serem
facilmente vistos à noite e sensíveis às alterações luminosas, os vaga-lumes
são bons bioindicadores para a qualidade das noites e ótimos exemplos dos
efeitos adversos da poluição luminosa. Devido a seu carisma, podem ser
excelente meio de divulgação e conscientização do problema da poluição
luminosa. Na biologia da conservação, chamamos essas espécies de
‘bandeiras’.
Além dos
vaga-lumes, outros organismos e insetos também são afetados pela iluminação
artificial, mas de formas distintas. Alguns insetos utilizam a posição
das estrelas e o sentido da luz (polarização) para navegação. Mariposas e
besouros têm seus ciclos de vida alterados e são atraídos e desorientados pela
luz, tornando-se vítimas fáceis de aves, mor- cegos e outros predadores. Esses
insetos desempenham diversas funções nos ecossistemas, como polinização,
alimento para outros animais, controle de populações de pragas, decomposição de
material orgânico e até dispersão de sementes. Fica claro, portanto, que
estamos longe de compreender a poluição luminosa, seus efeitos e consequências
no meio ambiente (ver ‘Efeitos da luz artificial em seres vivos’).
Efeitos da luz artificial em seres vivos
Efeitos da luz artificial em seres vivos
Plantas
utilizam a luz solar para realizar fotossíntese e direcionar seu crescimento.
Mudanças na duração dos dias causadas por luminárias levam plantas a se
confundirem em relação à estação do ano em que se encontram, resultando na
produção de flores, frutos ou queda de folhas em épocas inesperadas. Tais
alterações podem resultar em graves consequências para outros seres que delas
dependam, como insetos polinizadores. Em tartarugas marinhas, a luminosidade
dos centros urbanos orienta a caminhada dos recém-nascidos na direção oposta ao
mar, aumentando a mortalidade desses animais. Nos pássaros, a luz vermelha
interfere na orientação magnética; e, nas mariposas e nos besouros, focos de
luz atraem as mais diversas espécies, tornando-as mais vulneráveis a
predadores.
Economia e sociedade
Como pode ser
visto em imagens noturnas de satélite, a luz produzida pelo ser humano vem
envolvendo-o em uma névoa luminosa que o distancia das condições naturais. Além
de estarmos perdendo a visão dos vaga-lumes, também estamos deixando de
contemplar o céu estrelado e a Via Láctea.
Na última
década, dois terços da população mundial viveram em locais considerados
luminosamente poluídos e um quinto não foi capaz de contemplar a Via Láctea a
olho nu por estarem em áreas extremamente poluídas. Observar as estrelas teve e
continua tendo grande impacto sobre culturas humanas, influenciando filosofias,
religiões, arte e ciência.
Cientistas como
o economista norte-americano Terrel Gallaway investigaram os valores do céu
noturno sob uma perspectiva econômica. Uma tarefa árdua, pois a
perda da capacidade de observar o céu noturno é
comparável à perda das belezas naturais, de valoração econômica
difícil, uma vez que não se trata de um bem de consumo direto convencional.
Luzes da costa atlântica da América do Sul em imagem do satélite Suomi NPP, de 20 de julho de 2012. (imagem: Nasa) |
Igualmente
complexa é a tarefa de quantificar os valores dos serviços ambientais
alterados pela poluição luminosa. O cálculo se torna menos complicado
quando se trata de saúde pública comprometida e energia elétrica desperdiçada
em iluminações desnecessárias. A iluminação artificial excessiva,
principalmente na área rural, foi associada a uma maior probabilidade de
epidemias por atrair vetores de doenças, como o barbeiro (doença de Chagas), o
mosquito-palha (leishmaniose) e o mosquito-prego (malária).
Acredita-se
também que a iluminação noturna em centros urbanos influencie fatores
psicossociais, sendo mencionado como uma das causas que contribuem para o
aumento da criminalidade e depressão. Também se associou a poluição
luminosa à alta frequência de câncer em países em desenvolvimento, devi- do às
alterações provocadas nos ciclos de me- latonina (hormônio produzido à noite,
na ausência de luz). Quebras no relógio biológico humano são relacionadas aos
mais diversos problemas de saúde, como distúrbios cardio-vasculares, diabetes e
obesidade. Sander Kooijman e colegas, do Centro Médico da Universidade
de Leiden, na Holanda, descreveram, em maio de 2015, o mecanismo que associa
a maior taxa de obesidade em humanos à exposição prolongada a luzes
artificiais.
Exemplo de poluição luminosa em zona rural na região de Porto Feliz (SP). A foto foi tirada em noite de chuva, com cobertura total de nuvens, por volta das 3h da manhã. (foto: Oskar Hagen) |
Escuridão no fim do túnel?
Com o
desenvolvimento tecnológico das lâmpadas LED (sigla em inglês para diodo
emissor de luz), a iluminação artificial torna-se mais eficiente
energeticamente. Mas, em vez de usar- mos tal eficiência para reduzir o consumo
de energia, o menor custo energético está sendo utilizado para aumentar o fluxo
luminoso e, consequentemente, a poluição luminosa.
Medidas simples
podem reduzir a emissão de luz e sua influência negativa sobre outros seres,
inclusive sobre nós. Isso sem mencionar a conta de energia. Procurar
lâmpadas com baixa emissão nas faixas do ultravioleta e infravermelho
(comprimentos de onda não perceptíveis ao olho humano) já é um começo. Insetos
são especialmente sensíveis aos raios ultravioleta, e sabemos que eles
desempenham funções chave na nossa existência. Além disso, para combater a
poluição luminosa, é necessário repensar (i) o que precisa ser iluminado:
usando, por exemplo, holofotes direcionados e que não irradiem luz para a
atmosfera; (ii) quando: com o uso de temporiza dores e sensores de presença e (iii)
quanto: precisamos de luzes tão fortes e brancas para todas as tarefas?
Tentar reduzir a
exposição à luz artificial forte fora dos horários naturais de luz, trocar as
lâmpadas brancas por luzes mais amarela- das nos locais em que elas não são
necessárias, assim como trocar o celular ou o computador por uma boa revista
sob luz branda antes de dormir, podem proporcionar uma noite mais bem dormida.
Fonte: Revista Ciência Hoje
Oskar Hagen
Laboratório de Bioquímica e
Biotecnologia de Sistemas Bioluminescentes
Universidade Federal de São Carlos, campus Sorocaba
Departamento de Sistemas Ambientas
Instituto Federal de Tecnologia de Zurique (Suíça)
Unidade de Pesquisa Dinâmica de Paisagens
Instituto Federal de Pesquisa Florestal, Neve e Paisagem WSL (Suíça)
Universidade Federal de São Carlos, campus Sorocaba
Departamento de Sistemas Ambientas
Instituto Federal de Tecnologia de Zurique (Suíça)
Unidade de Pesquisa Dinâmica de Paisagens
Instituto Federal de Pesquisa Florestal, Neve e Paisagem WSL (Suíça)
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