Esta foto foi escolhida pela BBC 28 de setembro, 2012 como uma das 20 mais bonitas

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segunda-feira, 3 de outubro de 2016

O LADO SOMBRIO DA LUZ



Quando foi a última vez que o/a leitor/a observou vaga-lumes zanzando na escuridão? Ou contemplou a Via Láctea e a imensidão do universo a olho nu? Provavelmente, para os moradores de grandes centros urbanos, a resposta será “há muito tempo”. Com o aprimoramento das tecnologias de iluminação e o crescimento das cidades, a produção e a distribuição de luz artificial aumentaram enormemente – a níveis excessivos e desnecessários. Os efeitos pouco divulgados dessa ‘poluição luminosa’ estão relatados neste artigo.
Elaterídeo na região de Porto Feliz, em São Paulo. (foto: Oskar Hagen)

O domínio do fogo, e consequentemente da luminosidade, possibilitou ao ser humano exercer grande controle sobre o meio em que vivia, proporcionando imensurável vantagem seletiva.  A luz também foi fundamental para incontáveis avanços tecnológicos, que nos proporcionam mais comodidade e praticidade. Mas, apesar de a luz ser em muitas culturas símbolo do progresso, de pureza e beleza, ela também tem seu lado sombrio.
A poluição luminosa – toda luz desnecessária ou excessiva produzida artificialmente – é a que mais cresce no planeta e, infelizmente, os impactos do seu mau uso e os mecanismos com os quais podemos minimizá-los têm pouquíssimo destaque quando comparados aos de outros tipos de poluição.
O ano passado foi declarado pela Organização das Nações Unidas (ONU) como o Ano Internacional da Luz e das tecnologias baseadas em luzes, celebrando as vantagens energéticas, econômicas, habitacionais e de comunicações decorrentes delas. Enquanto se come- morava a luz com grande alarde, pouco se escutou ou leu sobre poluição luminosa, salvo por uma edição da revista Proceedings of the Royal Academy com artigos relacionados ao tema.
Não só seres humanos, mas insetos, aves e até o zooplâncton sofrem consequências da poluição luminosa. Na natureza intacta, as únicas fontes de luz durante a noite eram as estrelas e a luz refletida pela Lua. Os animais, incluindo os humanos, e as plantas evoluíram nos regimes de luz natural; portanto, é fácil imaginar que sofram direta ou indiretamente com as alterações artificiais da luz noturna.
A revolução industrial alavancou os efeitos da poluição luminosa para níveis altíssimos nos dias de hoje. É possível ver o intenso brilho noturno dos centros urbanos até em fotos de satélites, como esta, de 2012. Mais de perto, a poluição luminosa pode ser notada quando se observa uma ‘aura’ de luz no horizonte, olhando na direção de uma grande cidade. Esse brilho do céu noturno (termo conhecido como sky-glow em inglês) é causado por luzes terrestres direcionadas ou refletidas para a atmosfera. (imagem: Nasa)

Poluição luminosa, vaga-lumes e meio ambiente

Um exemplo dessa adaptação e dependência dos regimes de luz natural são os vaga-lumes. Coleópteros das famílias Lampyridae, Phengodidae e Elateridae são especialmente vulneráveis à poluição luminosa. Vaga-lumes são bioluminescentes – emitem a própria luz – e utilizam essa luz como sinal para se reproduzirem, afugentar predadores e até para predarem outros vaga-lumes. A finalidade mais comum da bioluminescência para esses insetos é a corte, em que a fêmea e/ou o macho sinalizam sua posição para atrair parceiros/as. Para que tais sinais sejam vistos, no entanto, é preciso haver escuridão.
Buscando o mínimo de gasto energético e máxima eficiência, vaga-lumes iniciam suas atividades bioluminescentes quando a noite atinge um determinado nível de escuridão.  A luminosidade ideal varia de espécie para espécie, mas, em geral, o ditado popular ‘vaga-lume não pisca em noites de Lua cheia’ expõe uma verdade. Cidades ou áreas iluminadas são como áreas de ‘constante Lua cheia’ para os vaga-lumes, levando a um forte declínio em suas populações, decorrente da redução nos encontros entre os pares. Em muitos locais no mundo, foi registrada a diminuição ou o desaparecimento de vaga-lumes em áreas urbanas e industrializadas, inclusive no Brasil.
Insetos são atraídos pela luz artificial. (foto: Oskar Hagen)
Apesar de outros fatores também poderem estar envolvidos no desaparecimento dos vaga-lumes, recentemente foi comprovado que a iluminação artificial direta, especificamente de luz branca, reduz de forma significativa, a atividade de vaga-lumes.
Ao longo de três anos, pouco antes e após a construção de uma quadra de esportes com holofotes de multi vapor metálico na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), campus Sorocaba (SP), populações de vaga-lumes no entorno foram monitoradas. Três áreas com pasto de braquiária e fragmentos de floresta atlântica em fase de regeneração foram escolhidas para o estudo.  Uma delas recebia iluminação direta dos holofotes da quadra; outra, luz indireta e uma terceira, mais afastada, era a menos iluminada pelos holofotes da quadra.
Áreas de estudo em Sorocaba (SP), de dia e à noite. (fotos: Oskar Hagen)
Em noites de jogo, com os holofotes acesos, a atividade de vaga-lumes do gênero Photinus diminuiu até 80% em relação às noites as luzes apagadas.  A influência foi mais forte em áreas mais próximas à quadra, e a ocorrência de vaga-lumes declinou de ano para ano, demonstrando que simples holofotes podem alterar a vida silvestre de maneira significativa.
Por serem facilmente vistos à noite e sensíveis às alterações luminosas, os vaga-lumes são bons bioindicadores para a qualidade das noites e ótimos exemplos dos efeitos adversos da poluição luminosa. Devido a seu carisma, podem ser excelente meio de divulgação e conscientização do problema da poluição luminosa.  Na biologia da conservação, chamamos essas espécies de ‘bandeiras’.
Além dos vaga-lumes, outros organismos e insetos também são afetados pela iluminação artificial, mas de formas distintas.  Alguns insetos utilizam a posição das estrelas e o sentido da luz (polarização) para navegação. Mariposas e besouros têm seus ciclos de vida alterados e são atraídos e desorientados pela luz, tornando-se vítimas fáceis de aves, mor- cegos e outros predadores. Esses insetos desempenham diversas funções nos ecossistemas, como polinização, alimento para outros animais, controle de populações de pragas, decomposição de material orgânico e até dispersão de sementes. Fica claro, portanto, que estamos longe de compreender a poluição luminosa, seus efeitos e consequências no meio ambiente (ver ‘Efeitos da luz artificial em seres vivos’).
Efeitos da luz artificial em seres vivos
Plantas utilizam a luz solar para realizar fotossíntese e direcionar seu crescimento. Mudanças na duração dos dias causadas por luminárias levam plantas a se confundirem em relação à estação do ano em que se encontram, resultando na produção de flores, frutos ou queda de folhas em épocas inesperadas. Tais alterações podem resultar em graves consequências para outros seres que delas dependam, como insetos polinizadores. Em tartarugas marinhas, a luminosidade dos centros urbanos orienta a caminhada dos recém-nascidos na direção oposta ao mar, aumentando a mortalidade desses animais. Nos pássaros, a luz vermelha interfere na orientação magnética; e, nas mariposas e nos besouros, focos de luz atraem as mais diversas espécies, tornando-as mais vulneráveis a predadores.
Economia e sociedade
Como pode ser visto em imagens noturnas de satélite, a luz produzida pelo ser humano vem envolvendo-o em uma névoa luminosa que o distancia das condições naturais. Além de estarmos perdendo a visão dos vaga-lumes, também estamos deixando de contemplar o céu estrelado e a Via Láctea.
Na última década, dois terços da população mundial viveram em locais considerados luminosamente poluídos e um quinto não foi capaz de contemplar a Via Láctea a olho nu por estarem em áreas extremamente poluídas. Observar as estrelas teve e continua tendo grande impacto sobre culturas humanas, influenciando filosofias, religiões, arte e ciência.
Cientistas como o economista norte-americano Terrel Gallaway investigaram os valores do céu noturno sob uma perspectiva econômica. Uma tarefa  árdua,  pois a perda  da capacidade  de observar  o céu noturno  é comparável à perda  das belezas  naturais, de valoração econômica difícil, uma vez que não se trata de um bem de consumo direto convencional.
Luzes da costa atlântica da América do Sul em imagem do satélite Suomi NPP, de 20 de julho de 2012. (imagem: Nasa)
Igualmente complexa é a tarefa de quantificar os valores dos serviços ambientais alterados pela poluição luminosa.  O cálculo se torna menos complicado quando se trata de saúde pública comprometida e energia elétrica desperdiçada em iluminações desnecessárias. A iluminação artificial excessiva, principalmente na área rural, foi associada a uma maior probabilidade de epidemias por atrair vetores de doenças, como o barbeiro (doença de Chagas), o mosquito-palha (leishmaniose) e o mosquito-prego (malária).
Acredita-se também que a iluminação noturna em centros urbanos influencie fatores psicossociais, sendo mencionado como uma das causas que contribuem para o aumento da criminalidade e depressão.  Também se associou a poluição luminosa à alta frequência de câncer em países em desenvolvimento, devi- do às alterações provocadas nos ciclos de me- latonina (hormônio produzido à noite, na ausência de luz). Quebras no relógio biológico humano são relacionadas aos mais diversos problemas de saúde, como distúrbios cardio-vasculares, diabetes e obesidade.  Sander Kooijman e colegas, do Centro Médico da Universidade de Leiden, na Holanda, descreveram, em maio de 2015, o mecanismo que associa a maior taxa de obesidade em humanos à exposição prolongada a luzes artificiais.
Exemplo de poluição luminosa em zona rural na região de Porto Feliz (SP). A foto foi tirada em noite de chuva, com cobertura total de nuvens, por volta das 3h da manhã. (foto: Oskar Hagen)

 Escuridão no fim do túnel? 

Com o desenvolvimento tecnológico das lâmpadas LED (sigla em inglês para diodo emissor de luz), a iluminação artificial torna-se mais eficiente energeticamente. Mas, em vez de usar- mos tal eficiência para reduzir o consumo de energia, o menor custo energético está sendo utilizado para aumentar o fluxo luminoso e, consequentemente, a poluição luminosa.
Medidas simples podem reduzir a emissão de luz e sua influência negativa sobre outros seres, inclusive sobre nós. Isso sem mencionar a conta de energia.  Procurar lâmpadas com baixa emissão nas faixas do ultravioleta e infravermelho (comprimentos de onda não perceptíveis ao olho humano) já é um começo. Insetos são especialmente sensíveis aos raios ultravioleta, e sabemos que eles desempenham funções chave na nossa existência. Além disso, para combater a poluição luminosa, é necessário repensar (i) o que precisa ser iluminado: usando, por exemplo, holofotes direcionados e que não irradiem luz para a atmosfera; (ii) quando: com o uso de temporiza dores e sensores de presença e (iii) quanto: precisamos de luzes tão fortes e brancas para todas as tarefas?
Tentar reduzir a exposição à luz artificial forte fora dos horários naturais de luz, trocar as lâmpadas brancas por luzes mais amarela- das nos locais em que elas não são necessárias, assim como trocar o celular ou o computador por uma boa revista sob luz branda antes de dormir, podem proporcionar uma noite mais bem dormida.
Fonte: Revista Ciência Hoje
Oskar Hagen
Laboratório de Bioquímica e Biotecnologia de Sistemas Bioluminescentes
Universidade Federal de São Carlos, campus Sorocaba
Departamento de Sistemas Ambientas
Instituto Federal de Tecnologia de Zurique (Suíça)
Unidade de Pesquisa Dinâmica de Paisagens
Instituto Federal de Pesquisa Florestal, Neve e Paisagem WSL (Suíça)

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