A família
de agricultores acordou cedo e tomou chimarrão naquela manhã quente de 21 de
dezembro de 2013. A mãe fez bolinhos para o lanche e iniciou o preparo da
lentilha para o almoço.
Mas,
quando Simone Rovadoski, 39 anos, saiu da casa para ajudar o marido José Dell
Osbel, 44, no cultivo dos 48 mil pés de tabaco da família, encontrou-o morto.
"Não
pude evitar que as crianças vissem. Foi um horror", relembra Simone sobre
o suicídio do marido, em Gramado Xavier, a 156 km de Porto Alegre. "Ajuda
a salvar meu pai, ajuda!", pedia o filho do casal, na época com 13 anos,
para curiosos que se aproximavam.
Osbel
passou a integrar as estatísticas que fazem do Rio Grande do Sul o Estado com
mais casos de suicídios no Brasil: 10 a cada 100 mil habitantes.
A taxa é
praticamente o dobro da brasileira (5,2 por 100 mil em 2012, segundo dados do
Ministério da Saúde) e próxima da taxa mundial (11,4 por 100 mil, segundo a
Organização Mundial da Saúde).
Simone Rovadoski ficou um ano sem plantar
depois da morte do marido
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Agrotóxicos
e depressão
Gramado
Xavier, com pouco mais de 4 mil habitantes, fica na região central gaúcha,
conhecida por ser um polo fumageiro - da indústria do fumo.
A conexão
entre suicídio e plantadores de fumo é apontada em diversos estudos
científicos. Um relatório da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia
Legislativa gaúcha apontava, em 1996, que 80% dos suicídios da cidade de
Venâncio Aires, a maior produtora de tabaco do Estado, eram cometidos por
agricultores. O mesmo estudo mostrava aumento nos suicídios quando o uso de
agrotóxicos era intensificado.
Segundo
uma pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o uso de
agrotóxicos, como os organofosforados, aumenta as chances de depressão dos
agricultores.
Em 2014,
20% de cem fumicultores entrevistados sofriam de depressão, segundo a UFGRS. O
quadro depressivo por exposição aos venenos, somado a fatores sociais e
culturais, pode evoluir para o suicídio.
A relação
é contestada pelo Sindicato da Indústria do Tabaco local (Sinditabaco), que diz
que "atrelar casos de suicídio ao uso de agrotóxicos na cultura do tabaco
é inconsistente".
Simone Rovadoski encontrou o corpo do
marido na plantação de tabaco da família
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O Rio
Grande do Sul tem 73.430 famílias (mais de 577 mil pessoas) que colhem 255 mil
toneladas de tabaco anualmente, de acordo com a Afubra (Associação dos
Fumicultores do Brasil).
A Afubra
alega que as empresas fumageiras orientam os agricultores quanto à aplicação
correta dos defensivos e o uso de equipamentos de proteção individual (EPIs).
Segundo o Sinditabaco, "alguns produtores ainda resistem à utilização
correta do EPI".
Mas
"o agrotóxico, para fazer efeito, tem que ser aplicado quando tem sol,
naqueles calorões infernais de novembro. O suor embaça os óculos (do
equipamento), a máscara sufoca, falta ar. A luva prejudica a coordenação motora
fina", conta Mateus Rossato, 35 anos, que trabalhou na lavoura da família
dos 12 aos 20 anos, em Nova Palma, a 224 km da capital gaúcha.
Rossato
avalia a falta de ergonomia dos equipamentos de segurança porque hoje entende
sobre o corpo humano: é professor de Educação Física na Universidade Federal do
Amazonas. Para ele, os equipamentos não são adequados às necessidades reais dos
agricultores. E, mesmo quando são usados, não impedem que o veneno, que é
carregado nas costas, escorra pelo corpo no momento da aplicação.
Doença da
folha verde
Os danos
à saúde relatados pelos próprios agricultores, porém, não são somente
psíquicos.
Do total
de entrevistados no estudo da UFRGS, 67% apresentaram os sintomas da doença da
folha verde do tabaco (DFVT), causada pela intoxicação por nicotina através do
contato da planta úmida com a pele. Os principais sintomas são vômito, tontura,
dor de cabeça e fraqueza, de acordo com o Ministério da Saúde.
Antes de
se suicidar, Osbel chegou a ser internado para tratar a depressão. Mas antes
foi diagnosticado por diferentes médicos com sinais da doença da folha verde.
O exame de José Dell Osbel demonstrava
o impacto da doença da folha verde do tabaco
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"Ele
ia para a roça e logo tinha que procurar atendimento porque desmaiava",
relembra Simone.
Ela conta
que, depressivo e intoxicado, Osbel também abusava do álcool.
"Os
agricultores acabam tratando seus problemas com o álcool. É mais um fator de
risco", afirma o médico psiquiatra Rafael Moreno de Araújo, coordenador do
Comitê de Prevenção do Suicídio da Associação de Psiquiatria do Rio Grande do
Sul (APRS).
O médico
ressalta que o histórico familiar, influenciado tanto pela herança genética
como pela cultura local, também colabora para o suicídio. Além de tudo, Osbel
tinha um avô que havia se suicidado.
"É
uma bomba-relógio", diz o psiquiatra ao enumerar os fatores de risco aos
quais os fumicultores estão expostos: genética, baixa escolaridade, histórico
familiar, estilo de vida estressante e intoxicação.
Dívidas com
as fumageiras
A questão
financeira é o principal gatilho para o estresse entre fumicultores. Eles
precisam organizar o dinheiro que recebem apenas uma vez por ano para sustentar
a família pelos 12 meses seguintes.
Além
disso, a maioria deles tem dívidas com as próprias empresas que compram sua
produção. Não é raro que os processos movidos pelas companhias terminem com a
tomada das terras dos agricultores.
"A
perda das terras é a perda da vida deles", analisa o advogado Mateus
Ferrari, que atende diversos casos de agricultores endividados.
A dívida
inicia quando o agricultor se compromete a entregar sua produção a uma empresa
específica. A empresa fornece sementes, venenos e equipamentos de segurança e
muitas vezes exige a construção de galpões. Mas tudo isso é descontado do valor
a ser pago pela produção.
Quando
esta é entregue, a empresa classifica as folhas através de uma amostra: quanto
mais qualidade, mais será pago. Muitas vezes os agricultores recebem menos do
que o planejado e ainda precisam pagar suas dívidas dos insumos.
"Eles
não têm como argumentar, a maioria tem escolaridade baixa. É o tempo todo sob
ameaça: 'vamos cancelar o pedido, colocar teu nome no SPC e acionar a
Justiça'", relata Ferrari.
Sob
ameaça de perderem suas terras e querendo receber os insumos da próxima safra,
os agricultores acabam assinando sua confissão de dívida, não raro com juros
sobre juros, sem estarem completamente cientes das consequências.
"A
gente tenta salvar as terras, mas não há como combater os contratos. Então,
tentamos um acordo para que os agricultores consigam pagar", explica
Ferrari.
Depois
que o marido se suicidou, Simone ficou um ano sem plantar porque, endividada,
não conseguia adquirir insumos. Só retomou a lavoura porque fez novos créditos
no nome "limpo" da filha, de 19 anos.
Falta de
apoio
Alguns
dos processos contra os agricultores são iniciados pela própria Afubra, em
teoria representante deles. A entidade alega que só entra na Justiça contra os
fumicultores "quando o individual se sobrepõe ao coletivo", mas não
especificou os casos.
A
entidade tampouco respondeu se ajuda os agricultores a entenderem seus
contratos ou se atua de alguma maneira na prevenção de suicídios.
O
Sinditabaco, questionado se auxilia os agricultores na prevenção do
endividamento ou contabiliza o número de casos na Justiça, diz apenas que
"trata dos assuntos comuns às empresas associadas e, portanto, não dispõe
desse tipo de informação".
O pai de
Júlio Selbach, 47 anos, do município de General Câmara, perdeu 22 hectares de
suas terras na Justiça. "A causa está perdida, não conto mais com isso.
Continuo lutando, mas vai ser muito difícil reverter", comenta Selbach.
Seu pai
era seu fiador de uma dívida de R$ 150 mil que a família considera
"inexplicável". "No final das contas tudo é legal. O orientador
técnico da empresa traz um monte de folhas e manda tu assinar. Eles dizem 'não
adianta nem tu ler que tu não vai entender. Se não quiser assinar o negócio
termina aqui'", relata.
Por causa
da dívida e da perda das terras do pai, Selbach largou a plantação de tabaco e
agora produz leite. Ele conta que histórias como essa muitas vezes acabam em
suicídio porque o "chefe" da família sente culpa por envolver a
família em uma situação de conflito.
O Rio Grande do Sul tem 73.430 famílias
(mais de 577 mil pessoas) que colhem 255 mil toneladas de tabaco anualmente
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O
psiquiatra coordenador da APRS corrobora a tese. "Nessa região o suicídio
é um problema que atinge os homens, que têm essa responsabilidade de ser o
provedor da família e acabam ficando com a culpa pela (má) safra, pela
dívida", diz Araújo. Segundo ele, poucos desses homens procuram ajuda
psicológica.
Há
também, segundo ele, negligência no atendimento do sistema de saúde. "Às
vezes o paciente chega (após ter tentado) suicídio, passa por uma lavagem no
estômago e é liberado, sem avaliação psiquiátrica", relata.
Intoxicação
infantil
O
problema se torna ainda mais complexo porque a entrada de muitos agricultores
na lavoura ocorre muito cedo. O marido de Simone, que se suicidou em 2013,
trabalhou na lavoura de fumo por 34 anos, desde criança. Rossato, o professor
de Educação Física, também trabalhou na roça quando era pequeno.
Por causa
da presença constante das crianças no campo, casos de intoxicação e alergias
são comuns.
O filho
mais velho de Luciana Pereira da Rosa, 44 anos, de General Câmara, apresentou
sinais de doença da folha verde quando tinha apenas 12 anos. "Ele ia para
a roça colher fumo e vomitava direto", relembra a mãe.
O filho
agora tem 28 anos e recentemente abandonou a atividade, junto com os pais.
Todos se mudaram para Taquari, cidade próxima, por causa da alergia da irmã
mais nova, hoje com sete anos. "A pele ficava vermelha, saía sangue e
levantava uma casca. Era horrível", lembra Luciana.
Os
médicos não davam um diagnóstico preciso sobre a causa, mas Luciana notava que as
crises ocorriam logo depois que o glifosato era aplicado nos pés de fumo da
família ou de vizinhos.
Com a
mudança de cidade, a filha não ficou mais doente.
O
Ministério Público do Trabalho do RS não dispõe de estatísticas sobre trabalho
infantil nas lavouras. De acordo com a procuradora Erinéia Thomazini, de Santa
Cruz do Sul, na região fumageira, "em muitos casos a denúncia de trabalho
infantil sequer chega".
Uma
pesquisa do IBGE aponta que 39.659 crianças de 10 a 13 anos trabalhavam no Rio
Grande do Sul em 2010.
O
Sinditabaco diz combater a prática, mas agrega que "temos ainda um caminho
a percorrer para a completa erradicação do problema". A entidade aponta a
necessidade de mais escolas rurais para auxiliar na prevenção.
Quem
deixa a plantação de fumo diz que a sensação é de alívio. Mas notícias sobre
suicídios de vizinhos e conhecidos sempre chegam.
"Lá
na minha região tem uma expressão: 'só se vende corda com receita médica'. Isso
porque é alta a incidência de suicídio dos agricultores. Você junta a depressão
com a dívida, a frustração de perder uma safra. É o contexto perfeito para se
suicidar", comenta Rossato sobre os conterrâneos.
Além disso, o silêncio dos agricultores sobre o
tema agrava o quadro. " O suicídio parece que é tratado como um tabu, quase
proibido ou até vergonhoso de falar. Claro que dói. Mas preciso falar porque
quero que menos gente tire a própria vida, como meu marido fez", alerta
Simone.
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