Os
tripulantes caíram do céu e aterrissaram no planeta azul direto na água. No
fundo da aeronave, organizados em pilhas, havia fileiras e fileiras de
astronautas adormecidos. Cada um dentro de sua própria cápsula, onde poderiam
ter ficado 10 mil anos.
Mas
não eram astronautas comuns. Nas semanas seguintes, eles saíram de suas conchas
e viraram monstros aquáticos completos: são rosa-salmão, com três olhos e 11
pares de pernas.
Isso
de fato aconteceu. O ano era 1972 e os passageiros sonolentos eram camarões
primitivos (Artemia salina), também conhecidos como macacos-do-mar ou artêmias,
voltando da missão da Apollo 16 à Lua. Eles haviam sido levados ao espaço para
testar os impactos da radiação cósmica em astronautas.
Essa
experiência traiçoeira demandava uma cobaia quase indestrutível. Conheça então
esse camarão de água salgada e sua capacidade de sobrevivência que desafia a
realidade.
Você
pode facilmente desidratá-los, incendiá-los, dissolvê-los em álcool, restringir
o oxigênio, bombardeá-los com luz ultravioleta, fervê-los a 105 °C ou
resfriá-los até quase o zero absoluto: o ponto em que os átomos param de se
mover.
Eles
também podem sobreviver em Ph extremos que dissolveriam a carne humana, em água
50% salina ou numa banheira de inseticidas. Também ficam tranquilos no vácuo
especial ou sob pressões enormes a 6 km de profundidade no oceano.
Agora
a ciência começa a entender como eles fazem isso.
O
espaço está tomado por partículas de alta energia chamadas raios cósmicos, que
facilmente atravessam células, tecidos e as paredes de alumínio de uma nave
espacial. A Lua era o local perfeito para estudar seus efeitos.
Comandante John Young na
Lua na missão Apollo 16
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O
experimento Biostack I envolveu um empilhamento de embriões desses camarões
primitivos, sementes de plantas e esporos de bactérias, entre camadas de
materiais sensíveis à radiação. Qualquer raio que atravessasse a pilha seria
identificado na camada de detecção, para que os cientistas da Nasa (agência
especial americana) soubessem exatamente quais passageiros haviam sido
atingidos.
De
110 embriões que levaram esse disparo galáctico, muitos nasceram – embora com
deformidades – e alguns tiveram uma vida normal de camarão.
Um
estudo seguinte, o Biostack II, foi levado à Lua pela Apollo 17 no mesmo ano. Atingiu
resultados semelhantes.
Resistência única
Esses
seres parecem bem frágeis, então qual é o segredo da resistência?
Grande Lago Salgado, nos
EUA, é lar para os crustáceos primitivos conhecidos como macacos-do-mar ou
artêmias.
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Apesar
do nome de macaco-do-mar, essa espécie não vive em mar aberto. Por mais de 100
milhões de anos, percorreram lagos e lagoas salgadas, do Grande Lago Salgado em
Utah (EUA) ao mar Cáspio.
Mas
esses camarões primitivos também não são camarões, embora ambos pertençam ao
mesmo grupo, os crustáceos. São mínimos, com apenas 15 milímetros de
comprimento. Alimentam-se de algas que filtram da água. Nadam de ponta-cabeça,
respiram pelas pernas e fêmeas não precisam de um macho para se reproduzir.
O
ponto crucial é a afinidade única que possuem por sal. Podem tolerar
concentrações de até 50%. Uma água assim é muito mais salgada do que o oceano,
que tem apenas 3,5% de sal, e o sal estaria quase se precipitando em matéria
sólida. Tudo bem para esses bichos.
Mas
há uma questão: se você vive num lago, há sempre o risco de que ele possa
secar. Lagos e lagoas habitados por esses crustáceos costumam desaparecer por
meses. Poderia ser um problema enorme, mas as artêmias apenas se desidratam.
Quando
as condições são favoráveis, as fêmeas produzem ovos de casca fina que eclodem
imediatamente. Mas quando a comida é escassa ou os níveis de sal estão em alta,
a saída é um plano B. Elas produzem "cistos" de casca dura, cada um
com uma larva quase toda desenvolvida.
As artêmias parecem
frágeis e com penugem.
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Esses
cistos são capazes de resistir à quase total desidratação, perdendo mais de 97%
de seu conteúdo de água. Todos os processos vitais param e eles entram em um
estado suspenso de vida chamado anidrobiose, uma escala bizarra entre vida e
morte.
Como
qualquer pessoa que tenha mantido artêmias como animais de estimação sabe, para
ressuscitar embriões basta adicionar água. Os cistos dobram de peso em menos de
24 horas, antes de eclodir em larvas do tamanho do ponto final desta frase. Ao
eclodir, eles têm apenas um olho primitivo, embora mais tarde ganhem dois olhos
mais sofisticados.
É
uma estratégia agressiva para um ambiente agressivo – e funciona. Nos anos
1990, empresas de exploração de petróleo estavam fazendo perfurações perto do
Grande Lago Salgado quando localizaram um tapete de cistos entre duas camadas
de sal. Imaginando se eles eclodiriam, jogaram alguns deles na água, e alguns
de fato saíram. Datação por carbono estimou que eles estivessem por ali havia
10 mil anos.
Como conseguiram?
A
água é o líquido no qual as moléculas em nossas células se movimentam e
interagem entre si, originando reações químicas essenciais à vida. Retirar a
água interrompe esses processos.
Para
a maioria dos animais, perder muita água corporal não apenas interrompe o
funcionamento do organismo, mas causa danos mortais. Humanos podem perder
apenas 15% da água do corpo, e poucos animais podem perder mais do que 50%.
Quando
a água é removida, as moléculas no interior das células perdem a rede
tridimensional que as mantêm boiando. Proteínas, carboidratos e cromossomos se
deformam e quebram.
O
desafio é permitir que as moléculas mantenham sua forma ao perder água. Para
isso, esses minúsculos crustáceos têm uma solução doce: transformam suas
células em açúcar sólido.
Os
cistos são preenchidos com um açúcar incomum chamado trealose, que soma 15% do
peso das artêmias. Forma-se um sólido como o vidro em janelas. Essa matriz
sustenta proteínas e membranas, mantendo suas estruturas, e as mantém
congeladas no lugar.
A
trealose é o ingrediente mágico comum à maioria dos organismos capazes dessa
forma de hibernação, incluindo os tardígrados (animal microscópico que vive em
finas películas de água), alguns vermes nematódeos e a larva de uma mosca
africana chamada Polypedilum vanderplanki.
Por
si só, a trealose simplesmente ajuda a artêmia a lidar com a desidratação. Mas
essa pode ser apenas a chave para outras habilidades desse animal. Abrir mão da
água traz alguns bônus interessantes.
Larvas de
Artêmia salina.
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Em
temperaturas quentes que humanos tendem a gostar, a água é famosa por suas
propriedades que favorecem a vida. Mas se você aquecê-la ou resfriá-la muito,
ela pode ser mortal. Cristais de gelo agem como facas, rasgando as células de
dentro para fora. A água em estado líquido também se expande ao se aproximar do
ponto de ebulição ou congelamento, com efeitos igualmente letais.
Se
você retira a água, você afasta todas essas ameaças. E mais: a radiação também
não causa tanto impacto.
Normalmente,
raios cósmicos interagem com moléculas de água no corpo. Isso desencadeia
formas altamente reativas de oxigênio, incluindo químicos semelhantes à água
sanitária. Esses químicos destroem tudo pela frente nas células. Embriões
desidratados de artêmias escapam desse perigo.
Truques adicionais
Mas
a desidratação não é cura para todo mal. Não protege o DNA de uma carga direta
de raios cósmicos, ou impede as proteínas de se desfazerem ao esquentar. Os
ciscos do crustáceo desenvolveram então outros truques, de reparos em moléculas
de DNA a proteínas sem estrutura fixa inicial.
Por
que a evolução impeliu os macacos-do-mar a ser tão resistentes? Parece que a
disposição deles para viver em ambientes tóxicos significa que suas vidas
estarão mais seguras.
Esses
camarões primitivos habitam lagos salgados, de condições tão hostis que também
são conhecidos como "mares da morte". O Grande Lago Salgado, por
exemplo, possui de 5% a 27% de sal, dependendo da quantidade de água.
Grande Lago Salgado é
ambiente de extremos, onde poucos animais conseguem sobreviver.
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O
lago fica no fundo de uma bacia plana, o que significa um desafio adicional. Se
o nível de água desce apenas 30 centímetros, a margem pode se mover até 1,6 km.
Entre 1963 e 1986, o lago encheu quase 60%.
Se
margens em retração e água mais salgada do que bacon não são suficientes, nas
altitudes do Grande Lago Salgado as criaturas devem lidar com uma carga de luz
ultravioleta 15% maior do que em relação ao nível do mar. Ainda há o risco de
sufocamento, porque água salgada comporta menos oxigênio dissolvido.
Com
é de se esperar, poucos animais podem suportar tais extremos. Além de larvas de
duas espécies de insetos, as artêmias têm o lago todo para elas. Isso significa
que não há predadores no encalço.
Sal essencial
A
relação desses crustáceos com o sal não é, porém, totalmente positiva.
Suas
células não podem processar sal em excesso, então os animais bombeiam sal para
fora e seus duros exoesqueletos impedem o sal de voltar para dentro. É um
processo que consome muita energia – então por que eles ainda assim vivem
nesses lagos salgados?
A
alimentação parece ser a resposta. Para sobreviver de uma dieta de algas
tóxicas, esses crustáceos desenvolveram uma relação com as bactérias em seus
intestinos, que os ajudam a digerir as refeições.
Artêmias filtrando algas
da água.
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Odrade
Nougué, da Universidade de Montpellier, na França, investigou se os adoradores
de sal seriam, na verdade, esses aliados microscópicos, e não os camarões.
Em
estudo publicado em setembro de 2015, Nougué e colegas criaram larvas de
macacos-do-mar em condições estéreis para se livrarem das bactérias
intestinais. Depois expuseram os animais a água com diferentes concentrações de
sal. Fizeram o mesmo com crustáceos com a concentração normal de bactérias.
A
descoberta foi que o camarão estéril se deu melhor com o ambiente de pouco sal,
enquanto os que ainda carregavam as bactérias precisaram de montes de sal. Para
Nougué, isso sugere que os camarões são vítimas de seus próprios parceiros de
simbiose. Eles não podem viver sem essas bactérias intestinais, e as bactérias
querem sal, então os camarões precisam encarar o sal também.
Apesar
dos desafios, viver em águas super salgadas traz boas recompensas: é um
ambiente rico em algas e de pouca competição biológica. No Grande Lago Salgado,
o número de macacos-do-mar atinge a casa dos bilhões.
Todo
verão, quando fêmeas botam ovos, manchas marcam a superfície dos lagos e as
margens são inundadas de rosa. Na primavera seguinte, com o aquecimento do lago,
bilhões de larvas diminutas começam a eclodir.
Aplicações
Todos
esses ovos e artêmias significam bons negócios para a região, que recolhe cerca
de 9.000 toneladas de ovos, larvas e adultos entre outubro e janeiro. Isso
equivale ao peso de 45 baleias-azuis adultas.
É
a resistência das artêmias que as torna tão atraentes. Seus cistos são
embalados a vácuo ou enlatados, e vendidos em todo o mundo. Após uma incubação
de 24 horas, as larvas alimentam peixes em fazendas comerciais.
Um "enxame" de artêmias;
animais movimentam economia e são estudados pela medicina.
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Elas
também podem ser consumidas diretamente, como fizeram nativos americanos há
milhares de anos. Têm até sido sugeridas como fonte de alimento para longas
viagens espaciais.
Os
cistos da artêmia também interessam a medicina, graças ao uso do “vidro de
açúcar” para suportar a desidratação crescente.
A
chamada liofilização, ou secagem a frio, poderia manter vacinas frescas em
áreas remotas, onde a refrigeração é difícil, disponibilizar insulina para
diabéticos sem a necessidade de injeções ou aumentar a vida útil de subprodutos
do sangue, como plaquetas. Muitos destes produtos revestidos de açúcar já estão
em testes clínicos.
Um
estudo de 2009 mostrou que células humanas podem ser liofilizadas em uma
mistura de substâncias químicas – incluindo a trealose. A longo prazo, esse
açúcar ainda pode ser usado para proteger os óvulos humanos.
Versão original em
inglês: BBC
Earth
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